21 setembro 2008

Crónicas do Baú IV

       Com algumas memórias ainda frescas de manifestações e assembleias estudantis, e com dedicações mais recentes a outros movimentos, ficaria bem começar esta crónica falando da influência de algumas leituras ‘revolucionárias’ na minha formação juvenil precoce, do Pequeno Livro de Marx Explicado aos Pequeninos ou da infância passada às cavalitas de alguém entre o 1º de Maio e uma qualquer reunião. Mas seria mentira, claro. Em 68 ou em 74 eu não existia. Isso custou-me durante alguns anos, sobretudo durante as manifestações, e às vezes ainda acho que perdi o melhor da festa, mas nada a fazer. E o meu Capital, Livro Vermelho ou Revolução Permanente chamou-se Os Sótãos Furados e hoje, quando penso nisso, concluo que talvez tenha ficado melhor servida. Desde logo, porque aprendi mais cedo que o esperado que havia palavras portuguesas com dois acentos. Pode parecer pouco, mas para quem tinha o fascínio das letras e a vontade de querer escrever sem mácula (mais do que 0 erros nos ditados costumavam deixar-me à beira da depressão, o que, vejo agora, devia fazer de mim uma miúda um bocado chata, facto apenas compensado por saber jogar bem à bola), era uma conquista. Mas centremo-nos nos sótãos.



       Na colecção ‘Picapau’, da Verbo, que tinha começado a ler há um ou dois anos, o volume de Os Sótãos Furados foi dos últimos que li. Talvez porque tinha uma única história, em vez das habituais três ou quatro, e eu achasse que livros com uma só história eram exclusivo de outras colecções (como a do Círculo de Leitores, onde tinha lido O Feiticeiro de Oz), achei sempre que aquele livro não fazia parte dos outros e tratei de o deixar de lado. E quando finalmente lhe peguei, não podia prever o efeito. Para quem não conheça o texto, a história de Os Sótãos Furados é a de duas crianças que vivem numa rua muito parecida com aquele em que eu vivia, com a diferença de terem acesso (e exclusivo, ainda por cima) ao sótão do seu prédio, local de brincadeiras e leituras várias. Foi assim que, nas primeiras páginas, tudo o que o livro conseguiu produzir em mim foi um enorme sentimento de inveja, coisa pouco saudável se pensarmos na ideia bonitinha de crianças leitoras que aprendem as coisas boas da vida nas páginas que lêem, mas talvez muito saudável se não acharmos que a leitura ‘serve’ para isso. E para mim, naquela altura, os livros não tinham ‘serventia’; estavam lá, guardavam mundos que eu queria conhecer, faziam medo, desafiavam, obrigavam-me a abrir os olhos e a procurar. Seria isto algo parecido com aquela ideia dos livros que nos salvam, mas felizmente só mais tarde vi a coisa desse prisma, o que me garantiu alguma sanidade mental. Assumida a inveja, até pela impossibilidade de ocupar o sótão do meu prédio (ocupado por um casal sui generis: ela, de voz potente e desbragada, capaz de dizer um chorrilho de palavrões enquanto a minha mãe ainda estava a pensar no gesto de nos tapar os ouvidos, ele, fumador compulsivo de ‘mata-ratos’, com dois cães anões de chocalho ao pescoço que o acompanhavam para a caça – como é belo o nosso Portugal, da serra ao subúrbio – e que obrigavam todos os vizinhos a tomarem conhecimento da madrugada em que a época dos tiros se iniciava), passei adiante. Numa tarde de brincadeiras, os dois irmãos ouvem uma pancada na parede, seguida do aparecimento de um par de olhos no fino tabique que delimitava o seu espaço. Ao lado desse sótão, um outro, igualmente território de uma criança. Uniram-se os dois primeiros sótãos por acidente, mas o movimento que daqui surgiria havia de revolucionar a rua inteira! Em dias sucessivos de adrenalina infantil, os miúdos deram cabo das paredes que os separavam do vizinho, descobrindo mais vizinhos da mesma idade e as vantagens de brincar em grupo. No fim do livro, a rua inteira tem uma fileira de sótãos unidos por portas improvisadas, na sequência de assembleias para tomar decisões e de arriscadas operações em segredo, para os pais não darem cabo da festa. E claro que no último sótão se revela uma descoberta, envolvendo o velho que vende balões na rua, mas isso na altura não pareceu nada previsível, o que só confirma que há livros que nos podem mudar a vida, desde que lidos na altura certa.
       Olhando para este enredo, e mesmo não fazendo a menor ideia de quem seja Maria do Carmo de Almeida, é óbvio que tudo isto cheira a cravos e a boas intenções para com a infância no fervor revolucionário pós-Abril. Afinal, se a festa tinha sido bonita, pá, para toda a gente, os putos também tinham direito ao seu quinhão, nem que fosse de sótãos ocupados e ruas libertadas do cinzentismo dos prédios e dos trabalhos de casa a horas certas. Só que eu, com oito ou nove anos e sem sótão para ocupar, ainda não tinha tido a minha revolução. E queria uma. Faltavam-me, é claro, os soldados do MFA e o povo disposto a lutar, mas tinha a minha cadela Joana, e isso superava todas as organizações. Se eu e a Joana, sem a ajuda de ninguém, fazíamos tanto estrago, era mais do que certo que aquela revolução estava ganha. Nessa altura, o passeio da tarde com a Joana pela trela estava por minha conta e isso garantia-me a ocasião e os reforços necessários. E foi assim que começámos (está bem, comecei eu) a observar o topo dos prédios do Monte Abraão com a atenção de um falcão. Com um levantamento satisfatório dos prédios cujas portas fechavam mal, passámos à segunda etapa e lançámo-nos, escadas acima, até aos últimos andares. E nessa altura aprendi duas coisas sobre os prédios suburbanos: primeiro, que a maioria dos pequenos caixotes de cimento que se vislumbravam do lado de fora com toda a pinta de serem um sótão pronto a ocupar eram, apenas, a caixa do elevador; segundo, que os sótãos propriamente ditos estavam invariavelmente trancados. E aqui, o fervor revolucionário foi esmagado num instantinho pelo peso da responsabilidade, e pelo pavor de imaginar a reacção materna quando descobrisse que eu – com a Joana pela trela – andava a invadir a propriedade alheia. Depois de alguns meses desta dura clandestinidade e da indecisão sobre entrar ou não entrar pelas portas trancadas, lá contei o plano à minha irmã, que conseguiu pôr-me algum juízo na cabeça, explicando que os sótãos serviam de arrumação, que as pessoas os trancavam e que dificilmente haveria miúdos a brincarem lá dentro. E eu cedi, nada convencida, e ainda reli o livro umas duas ou três vezes, na esperança de viver no texto aquilo que não podia viver de facto. E depois ainda cultivei a infelicidade de não ter um sótão durante mais algum tempo, antes de passar a outras empresas, e imagino que a minha irmã terá sentido algum alivio por não ver a sua irmã mais nova enredada nas teias do crime à conta de uma senhora que só queria escrever histórias edificantes para os petizes. Pela minha parte, estarei eternamente grata à Maria do Carmo de Almeida. A minha revolução dos sótãos ficou por cumprir, mas a disponibilidade para, às vezes, deitar uma ou outra parede ao chão ainda cá anda. E o único velho de barbas que começou tudo isso foi mesmo o velho dos balões.

Sem comentários: