Conheço poucas cidades estrangeiras (e tenho pena), mas em todas as que já visitei ou onde estive algum tempo há sempre uma ou mais livrarias a definirem os momentos que a memória decidiu guardar.
Londres será sempre Londres, é claro, mas as ruas onde passeei, os museus que vi, os pubs onde bebi e conversei, todas as memórias que guardo da cidade seriam pobres sem incluir nelas as livrarias da Charing Cross, aquela loja de banda desenhada perto do British Museum e um certo alfarrabista que me levou à ruína. E nem é preciso pensar tão alto. Qualquer habitante de Serpa, Montemor-o-Novo ou Braga sabe que as suas cidades não seriam as mesmas sem o espaço, os serviços e o convívio da Vemos, Ouvimos e Lemos, da Fonte de Letras e da 100ª Página. Parece um pormenor insignificante, mais uma livraria, menos uma livraria, mas apenas para quem não sabe que os livros nos podem mesmo salvar.
E todo este solilóquio vem a propósito de quê? Do primeiro aniversário da Pó dos Livros, cumprido ontem sem grande alarido. Quem conhece o local sabe do que falo. Quem não conhece, tem de estar consciente do que anda a perder. As Avenidas Novas já tinham alguns locais dignos de ocupar um espaço privilegiado na relação de cada um com Lisboa, é certo. No meu caso, a Gulbenkian, a FCSH e o Nimas serão sempre locais que me fazem pertencer à cidade onde vivo e dos quais guardo memórias que me definem. Mas, e livrarias? Sim, houve a Arco-Íris, mais marcante pela ampla oferta bibliográfica que tinha e pelo serviço de encomendas de livros ‘académicos’ do que pelo espaço acolhedor (para quem não se lembre, ficava dentro de um centro comercial algo decrépito) ou pelo ambiente. Houve também a Tema, que durou pouco tempo, e que eu conheci mal, apesar dos conselhos sempre sábios do meu amigo Rui. E há a Bulhosa, mas fica fora do raio sentimental que o meu mapa estabeleceu e já não tem o interesse de há dez anos, quando havia fanzines e livros de poesia com tiragens limitadas, livreiros que conversavam de ser humano para ser humano, e não de vendedor para cliente (agora não sei como estará, mas há poucos anos era assim e não era bom) e o Olímpio, sempre com um livro ou muitos para aconselhar. Essas Avenidas Novas deixaram de ser o meu espaço afectivo quando mudei de casa e de vida, passando a habitar o território nostálgico da memória, e isto apesar de visitas constantes. Quando a Pó dos Livros abriu, começou uma nova vida para as ruas onde em tempos passei parte considerável dos meus dias. O espaço, acolhedor, a selecção de livros, exigente e completa, e a disponibilidade de quem lá trabalha, tanto para os serviços que se esperam de uma livraria como para a conversa em torno dos livros, fizeram daquele lugar uma livraria 'a sério'. Não é um lugar onde vamos comprar um livro concreto nem o sítio onde podemos encomendar livros estrangeiros, embora possamos fazer ambas as coisas; é um espaço com identidade, uma loja que, adivinhamos na primeira visita, guarda tesouros, revelações, portos seguros e até desilusões. Os livros da Pó dos Livros podiam bem estar quase todos na estante de nossa casa, e até as estantes podiam estar em nossa casa, bem como o sofá, os candeeiros ou os pequenos objectos que se espalham pelas prateleiras, marcando pontos aleatórios como as afinidades que vamos estabelecendo com algumas páginas lidas. Os livros que nos salvam são, ali, uma realidade tangível e é isso que faz da Pó dos Livros uma livraria 'a sério'. Não tem figuras recortadas de escritores famosos em tamanho natural nem os livros todos que saíram para o mercado na última semana. Tem livros velhos, já usados, fundos de edição que esperam pelo leitor que os vai resgatar do esquecimento dos anos e livros de que os jornais não falaram. Tem alma, seja lá o que isso for. Como o tal alfarrabista da Charing Cross, a velha Leitura do Porto ou a Couceiro, em Santiago de Composela, ali tão perto da padaria com os melhores palmiers de chocolate do mundo, com o Alexandre e o Damián a discutirem se o melhor para o futuro do galego seriam as terminações em –ión ou em -om... E como outras livrarias que Lisboa vai vendo aparecer ou que ainda preserva. Mas é esta que faz anos e, recostada no Cadeirão, aqui lhes deixo um brinde e votos de prosperidade (e para a semana passo lá para resgatar o meu Kurt Vonnegut novo-velho, pode ser?).
11 setembro 2008
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