(11.01.1948 - 13.06.1997)
«recado»
in Horto de Incêndio, Assírio e Alvim, 1997
I
A ideia de melancolia, de que nos fala Fernando Pinto do Amaral em «Al Berto: um lirismo do excesso e da melancolia» (in Mosaico Fluido, Assírio e Alvim, 1991), atravessa este «recado», na sua consciência da vida como lugar de experiência. Toma-a, prende-a e leva-a para um virtual infinito de influências por demais reconhecidas (de Rimbaud a Genet, nas suas radicalidades). Dá-se o recado a ti, particularmente a ti, e não a vós, ou a eles; mas esse destinatário é tão mais ou menos virtual de acordo com a forma que o sujeito lhe dá. A melancolia, essa, resulta da necessidade de dizer (para tu ouvires!) a experiência como é possível ser dita: em poeira de desejos, sensações e imagens.
II
Uma ideia de vida que a liberdade da primeira parte do poema não resume. A ideia para esta vida não ficará completa sem a força do amor. Começar a morrer, logo na primeira estrofe, não diz mais que o reconhecido. Começar a morrer num dia limpo, polissémico na ambiguidade de luz, clarividência, pureza. Começar a morrer sem destino, num percurso solar, cósmico e vagabundo, longe daqui, dos outros. Receber as imagens da alucinação, do devaneio do voo, que as paronomásias sustentam numa cadência dormente, agora que a missão de caminhar se finda e o sujeito encontra finalmente o prazer. O Outono do dia, da vida, acalma a alma e a doçura fecha o ciclo.
O tu, que ouve, é equilíbrio na acção e passividade, no ego e reflexo, no devaneio e na tranquilidade, tu, que deve ir e deve deixar. Já o eu entoa com a autoridade de emissário omnisciente todas as recomendações. Será uma relação especular? A distância entre o emissor e o receptor será também ela virtual?
III
A tensão aumenta na segunda parte, a coda do soneto, para dizer o fim, o trágico que não o é, já não o pode ser desde que a modernidade abriu as fronteiras da palavra ao vestígio, desde que a contenção foi suplantada pelo silêncio e pelo excesso. Os efeitos metafóricos e metonímicos desencadeiam a inexplicabilidade do discurso, cumprindo a impossibilidade de dizer, deixando contudo uma teia de sentidos.
Prepara-se uma passagem para um outro lugar, a partida do «etéreo visitante», prepara-se tudo no tempo limitado pela proximidade. Prepara-se a viagem, com o que tem de precioso, purificador e destrutivo, prepara-se o reduto dos desejos (a poeira), prepara-se a morte.
Pode o amor ser responsável pela perda de si, pela viagem, pela mudança definitiva de paradigma, sem regresso. Ao contrário da primeira parte do poema, neste fim o tu age, constrói e não pode esquecer. «para lá da pele» é a pista para a inclusão do visitante, estranho a este monólogo. Para fora de si, ao outro, dá-se, sob a forma da recepção e da perda.
Estará este final dentro do percurso de liberdade da primeira parte? Os dois últimos versos esclarecem qual o «alimento suficiente para a tua morte»: «os sessenta comprimidos letais/ao pequeno-almoço».
IV
A ideia de melancolia, de que nos fala Fernando Pinto do Amaral em «Al Berto: um lirismo do excesso e da melancolia» (in Mosaico Fluido, Assírio e Alvim, 1991), atravessa este «recado», na sua consciência da vida como lugar de experiência. Toma-a, prende-a e leva-a para um virtual infinito de influências por demais reconhecidas (de Rimbaud a Genet, nas suas radicalidades). Dá-se o recado a ti, particularmente a ti, e não a vós, ou a eles; mas esse destinatário é tão mais ou menos virtual de acordo com a forma que o sujeito lhe dá. A melancolia, essa, resulta da necessidade de dizer (para tu ouvires!) a experiência como é possível ser dita: em poeira de desejos, sensações e imagens.
II
Uma ideia de vida que a liberdade da primeira parte do poema não resume. A ideia para esta vida não ficará completa sem a força do amor. Começar a morrer, logo na primeira estrofe, não diz mais que o reconhecido. Começar a morrer num dia limpo, polissémico na ambiguidade de luz, clarividência, pureza. Começar a morrer sem destino, num percurso solar, cósmico e vagabundo, longe daqui, dos outros. Receber as imagens da alucinação, do devaneio do voo, que as paronomásias sustentam numa cadência dormente, agora que a missão de caminhar se finda e o sujeito encontra finalmente o prazer. O Outono do dia, da vida, acalma a alma e a doçura fecha o ciclo.
O tu, que ouve, é equilíbrio na acção e passividade, no ego e reflexo, no devaneio e na tranquilidade, tu, que deve ir e deve deixar. Já o eu entoa com a autoridade de emissário omnisciente todas as recomendações. Será uma relação especular? A distância entre o emissor e o receptor será também ela virtual?
III
A tensão aumenta na segunda parte, a coda do soneto, para dizer o fim, o trágico que não o é, já não o pode ser desde que a modernidade abriu as fronteiras da palavra ao vestígio, desde que a contenção foi suplantada pelo silêncio e pelo excesso. Os efeitos metafóricos e metonímicos desencadeiam a inexplicabilidade do discurso, cumprindo a impossibilidade de dizer, deixando contudo uma teia de sentidos.
Prepara-se uma passagem para um outro lugar, a partida do «etéreo visitante», prepara-se tudo no tempo limitado pela proximidade. Prepara-se a viagem, com o que tem de precioso, purificador e destrutivo, prepara-se o reduto dos desejos (a poeira), prepara-se a morte.
Pode o amor ser responsável pela perda de si, pela viagem, pela mudança definitiva de paradigma, sem regresso. Ao contrário da primeira parte do poema, neste fim o tu age, constrói e não pode esquecer. «para lá da pele» é a pista para a inclusão do visitante, estranho a este monólogo. Para fora de si, ao outro, dá-se, sob a forma da recepção e da perda.
Estará este final dentro do percurso de liberdade da primeira parte? Os dois últimos versos esclarecem qual o «alimento suficiente para a tua morte»: «os sessenta comprimidos letais/ao pequeno-almoço».
IV
Afirmar a relação dialógica entre a euforia e a disforia, a cadência dos sons, as aliterações e os ecos, bem como o ritmo simétrico dos versos, sustentados por apóstrofes e imperativos retomados, significa dizer que há uma economia formal neste excesso metafórico, nesta perda de sentido, que confere ao poema uma legibilidade segura. Nessa legibilidade, as palavras ganham novos sentidos para os quais não há correspondente, e levantam dúvidas. Não há respostas porque o poema não se fecha, apesar das relações que se sobrepõem, ou se antagonizam, ou se esgotam, a cada leitura. A aceitação do poema é, por si só, o sucesso do trabalho poético que assenta no excesso lírico como opção para o indizível.
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