29 janeiro 2008

A arte do não belo

Deste lado da cidade os autocarros andam cheios até tarde da noite. As pessoas andam cabisbaixas, as vozes são queixosas e infelizes. Deste lado da cidade os passeios estão sobrelotados de pés que se pisam e braços que se empurram. Deste lado da cidade as montras acumulam preços e produtos sem brilho. Deste lado da cidade não há espaço nem tempo para a qualidade, para respirar bem e devagar. Deste lado da cidade anseia-se por soluções, utilidade, e nem se espera saber o que é harmonia. Deste lado da cidade as avós, as mães e as crianças andam a par, estreitas na idade e no alto tom de voz.
Deste lado da cidade o valor está no preço e não se pede mais. É a vida sem arte.

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Por mim, pagava-lhe a água
e a sandes (duvidosa, como
tudo o que aqui se faz). Mas não
posso ser despedida agora.
Ao dar-me o dinheiro, quase
pede desculpa dessa vida também
em forma de navalha romba.
Até, de certeza, amanhã – pois
nem a morte quer ir com a nossa cara.

Isilda ou a nudez dos códigos de barras, Manuel de Freitas, Black Son Editores, 2001

O código que se associa a um produto corresponde a todos os números, todas a senhas, que identificam o indivíduo, despersonalizando-o. Na indiferenciação normalizada, continuará contudo a haver a possibilidade de ler os pequenos comportamentos repetidos que ditam o individual. A leitura faz-se por interposição de um diálogo de identificação entre a empregada que ocupa a caixa do supermercado e a/o cliente, apesar de paradoxalmente, tudo não passar de um processo de disposição da ideia em texto.
Certo é que foi deste livro que me lembrei, na minha última visita ao Minipreço.

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