08 janeiro 2008

Crónica dos Lugares III

Enquanto descia a Charing Cross em romaria livresca, não imaginava que ia descobrir um alfarrabista tão memorável como o Quinto Bookshop, e ainda menos que a descoberta iria despoletar, dias mais tarde e já em Lisboa, o ressurgimento de um desejo antigo e perigoso. Passo já às explicações, antes de prosseguir com a descrição do êxtase por entre as prateleiras.
Há algum tempo atrás, a leitura de uma crónica de João Pereira Coutinho (esse cronista que eu deveria abominar a bem das minhas amizades e da manutenção da minha reputação de esquerda, mas que não abomino e ainda por cima leio com regularidade), desvendou-me um segredo luxuriante sob a forma de três palavrinhas separadas por hífens: Hay-on-wye. Até esse momento, nunca tinha ouvido falar de Hay-on-Wye, e assim deveria ter-me mantido, a bem da minha estabilidade familiar e financeira. Mas a vida é assim mesmo, e o santo Graal não pede licença para ser revelado. Com a leitura da dita crónica, abriu-se uma caixa de Pandora (desculpem a abundância das referências mitológicas, mas o caso pede alguma pompa simbólica) e pela minha mente não voltou a passar mais nada que não se relacionasse com a hipótese de, um dia, rumar até esse El Dorado que o cronista maldito me revelou. Hay-on-Wye é também conhecida pela ‘cidade dos livros’ e só isto já seria suficiente para os eventuais leitores perceberem a minha inquietação. Mas é pior do que isso. Hay-on-Wye, uma pacata cidadezinha (ou será vila, ou aldeia?) no País de Gales, transformou-se, a partir de 1961, num alfarrabista a céu aberto. A crer na descrição da crónica, porta sim porta sim há um alfarrabista, mais improvisado ou mais profissional, mas sempre repleto de livros, bons e baratos. Há alfarrabistas especializados em temas (Shakespeare, banda desenhada, Segunda Guerra, literatura infantil...), há antigas salas de cinema transformadas em livraria, há estantes pelas ruas, pelos jardins, por todo o lado.

No ano que passou, as economias (e a certeza do reembolso do IRS) permitiram pensar numa viagem um bocadinho maior, ou seja, sem tenda nem campismo, e a decisão recaiu sobre Londres. Eu tinha estado em Londres há dez anos, e mandava o bom senso económico não repetir viagens a sítios onde já se esteve, mas a ideia de um regresso, com o que de reconhecimento prévio isso acarreta, e a certeza de que passar uns dias em Londres nunca é um desperdício, por mais vezes que lá se tenha estado, fecharam o veredicto. Londres seria. E na preparação da viagem, não me ocorreu voltar a pensar em Hay-on-Wye, fantasia romântica reservada para um futuro de maior folga financeira ou mesmo para o domínio dos sonhos. Esqueceu-se, assim, o País de Gales e a cidade dos livros; restringiram-se as incursões livrescas a Londres e à sempre bem fornecida Charing Cross. E não houve desilusões, claro. Foyle’s, Blackwell’s, Murder One, Shipley. Pouco antes da transversal dos livreiros antiquários, desvendou-se a Quinto Bookshop, infelizmente encerrada, mas com um anúncio colado na porta, avisando que a reabertura estava marcada para o dia seguinte, pelas duas da tarde. Paciência. O mais certo era já não ser possível o regresso no dia seguinte, mas logo se veria. Mas o dia seguinte foi generoso, apesar das obras do metro e do tempo perdido em linhas e trocas. A fila à porta da livraria indiciava a qualidade do recheio ou os hábitos de leitura londrinos? Ou os dois? Lá dentro, o paraíso entre quatro paredes. Estantes até ao tecto, criando um pequeno labirinto pejado de livros: ficção, poesia, história, religião, viagens, policiais. E uma seta, a indicar mais uma sala, e depois as escadas para o andar debaixo, a cave de todos os sonhos, com livros a metade do preço em relação ao indicado. Várias salas sem luz exterior, uma espécie de armazém, onde estantes sucessivas anunciavam temas como zoologia, cinema, primeira guerra, segunda guerra, época vitoriana, artes, crítica literária, biografia, botânica, química, medicina... e a etiqueta ‘books on books’ em três estantes com centenas de livros sobre edição, bibliografia, catálogos, conservação de livros. A sombra de uma síncope insinuou-se no meu cérebro e foi imediatamente superada – se era para ter um qualquer achaque, que fosse depois de ter lido os livros todos que podia comprar ali e que provavelmente não encontraria noutro sítio. Contas feitas às libras e ignorados os receios sobre o excesso de bagagem, vieram de lá alguns exemplares que agora repousam pelas estantes: A common reader, de Virgina Woolf (a primeira série, e ainda impressa pela Hogarth’s Press), Stories, Essays & Poems, uma colectânea de G.K.Chesterton e Living With Books, de Helen E. Haines, um curioso manual que mistura biblioteconomia e bibliofilia e a que hei-de voltar em breve. Ainda houve libras para mais alguns, como uma edição de 1942 de The Children of Willow Farm, de Enid Blyton, Whizz for Atomms, de Geoffrey Williams e Ronald Searle e várias preciosidades da Penguin, directamente da década de quarenta do século passado. Hay-on-Wye estava esquecida, e a impossibilidade de a visitar nos tempos mais próximos, redimida.
Foi já em Lisboa, frente ao computador e ao dilema de escrever ou não o endereço do site que vinha nos sacos, que a coincidência se transformou em inevitável clamor do destino: a Quinto Bookshop possui duas lojas em Londres, mas a sua sede original fica em... Hay-on-Wye. E pior do que isso, a partir da sua página pode aceder-se a uma página sobre a cidade, que inclui a lista das livrarias alfarrabistas. Até mostram um mapa, várias sugestões de acomodação e as referências dos transportes para lá chegar, os bárbaros galeses. Não voltei a dormir em paz desde então. Perco as noites em cálculos geométricos que me permitam o sacrilégio supremo de criar uma segunda fila em todas as prateleiras, e em cálculos matemáticos que transformem o reembolso do IRS numa quantia quatro vezes superior ao habitual. Nada feito. Melhor acreditar que Hay-on-Wye não existe.

4 comentários:

DL disse...

"mandava o bom senso económico não repetir viagens a sítios onde já se esteve"

Pelo contrário, manda o bom senso que se regresse muitas vezes aos sítios onde se esteve (pelo menos aqueles de que se gostou). Saudações.

Sara Figueiredo Costa disse...

Isso é válido para o bom senso em geral, mas o bom senso económico é uma coisa tramada... De qualquer modo, nenhum arrependimento!

Saudações retribuídas,
Sara

Sofia Rodrigues disse...

Hay-on-Wye é realmente um sítio maravilhosamente irreal. Estive lá, há já dois anos, no final de uma volta pelo País de Gales. Gostava de lá voltar mesmo na época do festival em que tudo acontece à volta dos livros e em que o sítio fica a abarrotar.

Metropolis disse...

Sara ainda bem que existes para escrever tão bem sobre uma rua que também é dos meus afectos. Embora eu saiba que tu escreves bem sobre qualquer rua e sobre qualquer afecto, neste caso e por razões que a razão só pode desconhecer, foi como se estivesse lá contigo a vasculhar as prateleiras dessa livraria de livros velhos que nunca morrem.