Não guardo uma memória muito nítida da primeira visita à Barateira. Terei lá chegado pela mão da minha irmã, que me ia ensinando os caminhos de Lisboa. Mas lembro-me bem das várias vezes em que lá voltei, assim que passei a ter idade para andar de comboio sozinha (um verdadeiro rito de passagem para os adolescentes suburbanos do meu tempo). As duas salas com estantes até ao tecto e pó de muitas gerações começaram, então, a ganhar a mesma dimensão que a gruta de Ali-Babá tinha ganho uns anos antes: com muito poucos escudos, voltava-se para casa com vários volumes e a escolha parecia interminável.
Nas prateleiras da Barateira descobri autores que, de outro modo, talvez só conhecesse muito mais tarde, aprendi a identificar editoras e catálogos e habituei-me ao design de algumas capas que ainda hoje guardo como bons exemplos. Na fase em que tinha a certeza de que quando fosse grande queria viver em Paris (numas águas-furtadas escurecidas, obviamente, mas talvez sem a parte decadente da tuberculose...) e em que a Françoise Sagan era a deusa do meu olimpo literário, passei boa parte das tardes livres em busca de mais títulos. Eu conhecia o Bonjour Tristesse e o Aimez-vous Brahms, mas precisava de mais. E encontrei: Um Raio de Sol na Água fria, Viver Não Custa, Dentro de Um Mês, Dentro de Um Ano. Quando a fase francesa acabou, foi lá que comprei os primeiros livros de Jack London, Machado de Assis e Steinbeck, e foi lá que procurei em vão a velha edição de Pela Estrada Fora, de Jack Kerouac, que só pude comprar em português muito depois, já na tradução de Relógio d’Água. Poucos anos mais tarde, com menos borbulhas e muitas certezas políticas ainda por questionar, as mesmas prateleiras forneceram-me doutrina e exemplos, para logo depois me fornecerem as dúvidas e inquietações de que nunca mais me separei.
Com o passar do tempo, a Barateira deixou de ser o meu ponto de refêrencia livresco. Conhecidos mais autores, a descoberta de nomes tornou-se pontual e a busca pelas estantes mais dada ao encontro de raridades bibliográficas ou velharias curiosas. Mas apesar do tempo, a imponência das duas salas separadas por um degrau onde as mesmas caixas de mapas parecem viver há décadas não perdeu o encanto e todos os motivos parecem bons para regressar. Há um ou dois anos, com o pretexto de um especial sobre livros policiais para a revista onde escrevo, passei por lá para colmatar algumas falhas na minha estante. O dossier falaria sobretudo de novidades editoriais, coisa que a Barateira não vende, mas isso não me impediu de encontrar um livro de Artur Cortez (com posfácio de Manuel Gusmão) da ‘Série Negra’ da Regra do Jogo, um ou dois livros do Inspector Maigret de Simenon, na velha edição da Bertrand, com o cachimbo a preto sobre a cor da capa, e alguns volumes mais antigos dos livrinhos de capa preta da Caminho. Tudo por poucas moedas, agora de euro. Tudo descoberto com os gestos de sempre: procurar com calma, ceder a todos os impulsos de curiosidade relativamente às lombadas que se vão sucedendo e deixar o inesperado levar a melhor no momento de decidir quais os livros que ficam e quais os que se trazem para casa. Nunca falhou.
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