30 outubro 2008

Pré-Publicação: Saga Lusa, Adriana Calcanhotto (Quasi Edições)




Voltei do segundo show pálida, trémula, mas mantendo a pose no meu deslumbrante robe azul. Subi no elevador com uns africanos que se entreolhavam, tentando localizar de que tribo são as senhoras que andam de robe de veludo e havaianas, com uma braçada de flores na mão e olheiras que as fazem parecer um urso panda disfarçado de cantora – vestida e com a maquiagem borrada pela ex-mulher do Gerald Thomas. Eu tremia de frio, mas sorri, claro, pros africanos. Tomei um banho quentíssimo, durante longos minutos porque, pra mim, esta é a melhor hora dos shows e porque precisava me aquecer e não conseguia. Um urso panda certamente não se enganaria, mas eu, até então, não tinha me dado conta de que estava ardendo em febre e que um banho pelando não ajudaria muito, sabe que o QI das cantoras... Fiz o show com febre sem me dar conta disso, enfim, sabia é que não podia me dar ao luxo de ter febre porque tinha ainda mais não sei quantas entrevistas pela frente. Fui pra cama depois do banho quente, mas não deu. De madrugada, com muita peninha, acordei meu anjo Suely para pedirmos um termómetro na recepção. Mas o Sheraton Lisboa não tem um termómetro. Não entendo bem o raciocínio, mas deve ser algo do tipo – pois, isto é um hotel, minha senhora, não uma clínica geriátrica. Então um mensageiro foi, de madrugada, não sei onde, comprar o termómetro mas pelo que demorou desconfio que tenha ido a Madrid. Chamamos a médica que atende ao hotel e ela me disse ao chegar:

– Atendo atletas e desportistas, e vocês, cantores, são da mesma categoria: dão mais do que têm.

Nossa, isso calou fundo. E prosseguiu:

– A menina Adriana não pode tratar-se assim tão mal, por que é que está a fazer isso consigo?

Respondi...

– ...ãeamhuam.

Pra encurtar, antibióticos, aaarrrgghh, antiinflamatório, uuugllh, programação da tv a cabo, aff. A Adriana não pode dar as entrevistas de amanhã. Escândalo na gravadora, na editora, isso não é possível, como é que vai ser? Vai pôr tudo a perder! Nem quero entrar nessas considerações, que isso era pra ser um email e está virando Guerra e Paz, mas tá puxado, viu? Anabela manda músicas que não consigo ouvir inteiras por causa da dor de cabeça, mas que adoro quando chegam. A febre não cede. Camisolas encharcadas. Cancelar as entrevistas de depois de amanhã também. Liga pra gravadora, agora é o fim da carreira dela, que pena, ia tão bem. A febre piora.

– Isabel? Oi! Tudo bem sim, e você?... Pois é, que chatice, a febre não sai do lugar, cara.

– Tenta um outro médico, quem sabe, tantos amigos aí, eles não têm médico? Não vão ao médico?

– Como assim, “não vão ao médico”?

– Sei lá, são portugueses...

– Não, não tem nada a ver com a médica, adorei-a. Apesar de ela, antes de me dizer boa-noite, ter feito duas das perguntas que passei os doze anos de psicanálise escapulindo de me fazer. Ela é calma. Séria. Entendeu que tenho hiperplasia congénita das supra-renais, de instalação tardia, a forma não-clássica, que tomo cortisona diariamente para o resto da vida, que sou maluca, “artista”. Ela até pensou em me dar outra medicação, mas sabe que é arriscado por causa da cortisona, disse que não iria ministrar, sob hipótese alguma. Nem minha mãe conseguiu entender até hoje que tenho essa enzimopatia, me afeiçoei, deixa a Doutora.

– Mas ela não é a médica do Sheraton?

– Então.

– O Sheraton não tem um termómetro, Adriana, custa ver outra pessoa? Eu procuraria uma segunda opinião.

– Não, não custa, vou ver...

Agora, não me venha falar mal do Sheraton com ironiazinhas que não admito. Falo eu, mal do Sheraton. Porque amo este hotel, ele é meu, tenho as melhores recordações daqui, dos funcionários, das gentilezas, dos sorrisos, das pessoas, das minhas estadias todas, que maluquice. Só porque algum hóspede brasileiro algum dia provavelmente deu a Elza no termómetro, pediu pra usar e “esqueceu” de devolver, o Sheraton Lisboa é o quê? Desequipado? Relapso? Ah, me poupe.

Outro médico, este indicado pelo António. Simpático, açoriano. Vamos pro hospital às dez da noite tirar chapa do pulmão. Traqueobronquite, pulmão de fumante passivo, bingo. Nas análises de sangue, infecção e discreta anemia. Isso sou eu – vi logo que não haviam trocado os resultados porque nunca fiz um exame na vida que não revelasse discreta anemia. É que tenho hiperplasia das supra-renais na forma não-clássica, o Kennedy também tinha, esquece. Chega no quarto do hotel o pedido da farmácia. Vamos ter amanhã que comprar uma mala pra levar os remédios, o que não seria nada demais se não tivesse que tomá-los. Me apronto pra dormir depois de tomar os remédios, todos de uma vez, e aplico a bombinha com desinfectante pra garganta. Vai saber por quê, esse negócio disparou meu sistema simpático, fiquei com palpitação, fritando, suando, com uma sensação de medo medo medo. Dormi exausta e acordei de um sonho medonho, empapada de suor, chorando sem poder me controlar. Só pensava que um dia aquilo ia passar. Bad trip, total. Graça? Nenhuma. Tô aqui agora de ressaca dessa noite que pretendo deletar, com uma mesa-de-cabeceira que parece um estande de lançamentos farmacêuticos, parecendo um urso panda disfarçado de cantora dramática de cama. A camareira me viu tossir e gentilmente disse-me:

– Pois, está mesmo muito mal, hein?

Domenico veio me visitar de manhã, fofo. Trouxe um óleo francês de eucalipto, me fez rir contando histórias da Orquestra Imperial e pegou a estrada com a banda e os técnicos, que estão indo na frente para Torres Novas. O show é amanhã.


Adriana Calcanhotto
Saga Lusa
Quasi Edições (nas livrarias em Novembro)

3 comentários:

Jacqueline Salgado disse...

Oi Sara! Muito bom o seu blog! Recebi um este link pela newsletter da quasi edições, você conhece o Jorge Reis-Sá? Trabalha com ele? Sou uma grande fã desse "rapaz de Famalicão"! Aqui no Brasil, estamos muito orgulhosos da Calcanhotto, que esse trabalho traga ainda mais sucesso à ela e à editora.
Abraço grande pra você!

Sara Figueiredo Costa disse...

Olá, Jacqueline,

muito obrigada pelo comentário. Conheço o Jorge Reis-Sá, mas apenas por conversas telefónicas ou via mail... Talvez na apresentação do livro da Adriana Calcanhotto aqui em Lisboa possa emendar isso.
E quanto à Saga Lusa, que já li, e de que gostei muito, espero que tenha todo o eco aqui em Portugal.

Um abraço,
Sara

Carlos Lopes disse...

Acabei ontem de ler Saga Lusa e diverti-me imensamente. Apesar de todo o "drama" vivido pela Adrix, o livro tem uma dose de humor surpreendente! Gostei. Gostei muito do blog também.