27 outubro 2008
Peter Newell, O Livro Inclinado, Orfeu Negro
Artista prolífico, Peter Newell assinou ilustrações, cartoons e banda desenhada para dezenas de jornais e revistas norte-americanas, entre 1883 e 1924, data da sua morte.
O Livro Inclinado pertence a um núcleo de obras que Newell criou na fronteira imprecisa entre a ilustração e a banda desenhada, onde as preocupações formais com o próprio objecto-livro são um elemento recorrente. Dos seis livros que compõem esse núcleo, The Hole Book, The Rocket Book e este O Livro Inclinado (The Slant Book, no original) constituem uma unidade particular, na medida em que partilham a sequencialidade das imagens que acompanham as rimas que constituem o texto e a materialização dessa sequencialidade num elemento que ganha corpo no próprio livro enquanto objecto. Nos dois primeiros, um buraco (de bala ou de foguete) atravessa as páginas, incorporando-se o vazio que deixa no papel na composição das ilustrações. N’O Livro Inclinado é o formato do volume que acompanha a sucessão de imagens onde um carrinho de bebé vai deslizando por uma rampa íngreme, com o respectivo ocupante como ‘piloto’.
Rimas e ilustrações, que terão sido pensadas para um público infantil (o que justifica a presença numa colecção como a que este livro inaugura, a Orfeu Mini, ainda que a sua apreciação nunca se tenha resumido às crianças), revelam o programa artístico de Newell, observador atento do quotidiano e mestre exímio na arte do cómico. O Livro Inclinado retrata o que bem podia ter sido uma cena banal numa qualquer cidade, um corte temporal na narrativa dos dias, mas fá-lo exagerando as possibilidades (inclusive as da física, já que seria duvidoso que um carrinho de bebé se mantivesse tanto tempo em movimento descendente sem cair) e acentuando características das personagens envolvidas para melhor alcançar diferentes níveis de cómico, da linguagem à situação. A sequência dos encontros do carrinho com as personagens que se encontram na rampa revela situações desastrosas, mas que se tornam cómicas graças à “anestesia momentânea do coração”, a condição que Bergson impôs para a sã existência do riso provocado por situações nem sempre agradáveis. Como os constantes atropelos de um carrinho de bebé desgovernado.
Sara Figueiredo Costa
('Versao integral' do texto publicado no suplemento Actual do jornal Expresso, 17 de Outubro 08)
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário