30 setembro 2008

As cartas de Norman Mailer

Na mais recente edição da New Yorker publica-se uma selecção de cartas de Norman Mailer que, para lá da leitura quase voyeurista que a epistolografia proporciona, constitui uma visão cronológica muito pessoal sobre a segunda metade do século XX, com reflexões de carácter político, partilhas literárias e dúvidas expostas 'em voz alta', como só nas cartas se podem expor tranquilamente. Os destinatários incluem a família mais próxima e os amigos, para além de uma ou outra missiva de carácter institucional, e as cartas abarcam um período considerável, começando em 1945 e terminando em 2005, dois anos antes da morte do autor.


(imagem retirada daqui)

Aqui, a missiva natalícia para Allen Ginsberg, em 1969:

To Allen Ginsberg

December 9, 1969
Dear Allen,
. . . This is just to say love to your manse and three cheers for the organic farming.
Yours sincerely,
Norman

P.S. People keep asking me to do pieces on what I think the ’70s will be like. Do you know I don’t have the remotest idea. We were sure of what would happen in the ’60s and we weren’t far from wrong. The ’70s are just a fearful blank to me. I hope it’s age rather than presentiments. Merry Christmas dear poet.

A saga de A Jóia de Medina

Apesar da duvidosa qualidade literária do texto, cuja publicação na Porto Editora foi recusada por Manuel Alberto Valente por esse mesmo motivo, The Jewel of Medina, de Sherry Jones, parece ter garantida a edição pela inglesa Gibson Square. E isto, contra todos os avisos e ameaças, que já se concretizaram num ataque à casa particular de Martin Rynja, a editora inglesa, e depois de algumas desistências editoriais (entre elas a da Randhom House) motivadas pelo medo de consequências mais graves. A Gibson Square mantém a sua decisão e o livro, ao que parece, mauzinho, acaba por ganhar contornos de resistência contra os atentados à liberdade de expressão que vão chegando de sítios diversos. Nem uma campanha de marketing bem orquestrada faria tanto por um livro mau, cuja publicação apetece defender com todas as forças, mesmo dispensando a leitura de qualquer capítulo.

Da Galiza III

"Abecedario de árbores"

bidueira é con b de branco
branco como a lepra,
os longos rabos do b
desempenados como riscas de xiz.
Na cortiza branca da bidueira
sutil como a casca do ovo
os indios de tempos idos
(antes do alcohol barato, das plumas de plástico)
escribían mensaxes instantáneas
fráxiles como todo o que vale a pena.
bidueiras como mulleres de loito,
como prisioneiros famentos
na interminable estepa do país do Medio,
unha mitteleuropa ou outra,
montando garda ós espectros
de Dachau ou Matthausen.

ollo coas acacias,
con c de coitelo.
son máscaras de entroido
que esconden o gume das súas follas
nun estoupido de lámpadas amarelas.
Unha acacia ou mimosa nun entroido, hai anos,
partiume a lingua en dous.

e que dicir das magnolias
con m de mágoa
que te asaltan por sorpresa
con esa creación excesiva
de flores pesadas como chumbo,
as linguas ou sexos dos pétalos
murchas antes de abrirse.
Non quero ver magnolias, non
teñen contención, non
son discretas.
Esa paleta de cores carnais
non se acorda coa miña roupa
nin cos mobles do living room.

plataneiro, con p de prender,
con p de pólvora e pincel,
falsos como ningunha árbore,
que levan na codia un mapa
con promesas de viaxes incumpridas.

árbores de inverno,
o último libro que
Sylvia
antes de pousar a cabeza
no acougo enganadizo
do forno de gas.

Marilar Aleixandre, in Abecedario de árbores, 2006

29 setembro 2008

Câmara Clara e PNL

O vídeo da emissão de ontem do Câmara Clara já está disponível no site e vale a pena acompanhar a discussão entre Francisco José Viegas e Isabel Alçada a propósito do Plano Nacional de Leitura. Com o avançar da conversa, percebe-se onde é que as coisas se separam: para Isabel Alçada, o importante é que os miúdos leiam, porque só assim podem ganhar hábitos de leitura. Certo. Mas FJV levanta a problemática das escolhas, questionando, de um modo mais ou menos directo, os critérios que presidiram à definição das listas do PNL. Isabel Alçada assegura que não há livros mal escritos ou com erros. FJV insiste na necessidade de se pensar noutros critérios. E o espectador, pacatamente sentado no sofá, percebe que não houve outros critérios, ou pelo menos outros critérios directamente relacionados com a existência de um cânone, quando Isabel Alçada pergunta 'E quem é que define esse cânone?', desvalorizando o peso dos clássicos e a selecção do tempo e contrapondo à presença do cânone numa escolha do tipo do PNL a importância de dar a ler tudo, para os miúdos lhe ganharem o gosto. Subjacente a isto, e não radicalizando demasiado a qualidade do que se dá a ler (o que implicaria impedir, ou evitar, leituras menos boas, e isso parece-me obviamente pouco produtivo) fica uma ideia muito pobre do que subjaz à promoção da leitura e uma dúvida: se os miúdos só lerem manuais de instruções da Playstation até aos dez anos serão capazes de, algum dia, ler qualquer outra coisa? É uma leitura como qualquer outra, pelo que, seguindo esta lógica, devia estimular o gosto e o hábito de ler. Estimulará? Do mesmo modo, um miúdo que cresce sem qualquer acesso (adaptações incluídas) aos 'clássicos' (sim, os do cânone), algum dia terá capacidade para os ler?

Da censura

Philip Pullman, que viu o seu livro The Golden Compass sofrer várias ameaças de proibição em bibliotecas norte-americanas, escreve sobre a experiência, os motivos e os efeitos da censura. Para ler aqui, no Guardian on-line.

26 setembro 2008

V. S. Naipaul na Gulbenkian

No âmbito da exposição «Weltliteratur - Madrid, Paris, Berlim, São Petersburgo, o Mundo!», qua inaugura na próxima terça-feira na Fundação Calouste Gulbenkian, o escritor V. S. Naipaul virá a Lisboa para participar no ciclo de conferências que decorrerá em paralelo (entre 1 de Outubro e 17 de Dezembro).
A exposição, comissariada por António M. Feijó, estará aberta ao público até ao dia 4 de Janeiro de 2009.



Fonte: Diário Digital

Bibliofilias


No Leilão Ameal. Crónicas Amenas de uma Livraria A Menos
Matos Sequeira
Letra Livre, 2008

A inaugurar a colecção 'Bibliofilias', a Livraria Letra Livre reeditou No Leilão Ameal. Crónicas Amenas de uma Livraria A Menos, de Matos Sequeira (originalmente publicado em 1924). Os apontamentos cronísticos sobre o ambiente dos leilões lisboetas de livros no início do século XX ensinam tanto como divertem, expondo as manhas e os rituais dos bibliófilos, as angústias que se sucedem à compra, por outra pessoa, do livro desejado e os habitués da bibliofilia.
Aqui ficam dois pequenos excertos:

"É ainda o Sr. Potter - a quem um dos assistentes chama o Potter das Almas - quem arremata a Corographia, do padre Carvalho, por 510$00. O Dr. Perry Vidal, como não consegue comprar nada, atira com os livros para cima da mesa e entorna cinzeiros. É um verdadeiro ciclone!
Chega a vez de Camilo. Alerta, camilianistas! São só quatro obras: as Folhas Cahidas, a Historia de GAbriel Malagrida, a Maria! não me mates! e o Matricidio sem exemplo. Todas elas não chegaram a 230$00. E acabou-se." (pp.20-21)

"O Estado ainda não arrematou um único livro, nem sequer tem comparecido. Falta de verba? ou não haverá na livraria obras que o interessem?" (p.55)

Livros sem censura

Os ecos do documentário Obscene, de Neil Ortenberg & Daniel O'Connor, sobre a vida e a obra de Barney Rosset, editor da Grove Press e da Evergreen Review, chegaram esta semana ao New York Times. Dos problemas com a justiça puritana que não gostou de ver Henry Miller ou D.H. Lawrence em letra de forma, até à condecoração do National Book Foundation, que receberá em Novembro, pela sua luta pela liberdade de expressão, a vida de Barney Rosser guarda muitas histórias, nem todas tão conhecidas como estas.
Virá ao Doc. Lisboa?


Na imagem, Barney Rosset com Samuel Beckett, em Paris, 1956
(retirada da Syracuse University Library)

25 setembro 2008

Da Galiza II

Cociño a todas horas para precipitar os alimentos crus
nos abismos da pota. As galletas maría
(sutilmente esmagadas)
engordan (disque) a salsa de tomate.
Non dispoño de método pero exhumei un libro de receitas
que parece un compendio do universo.
Da natureza dixo galileo
que era un grande tecido (calceta, macramé)
e o papel de cebola serve para calcar os versos que nos gustan.
Sempre a cebola tarda (tremede, lacrimais) en desfacerse,
por iso é o primeiro que se bota.
Nos queimadores, en cuestión de segundos,
o lume ocupa o lugar da indiferencia.

María do Cebreiro, in O Estadio do Espello, Edicións Xerais, 1998

24 setembro 2008

Notas de Praga (Agosto 08) IV

Um eléctrico fotogénico deixa-me a poucos metros do Mosteiro de Strahov, um pouco acima do plano médio da cidade, de um lado casas, do outro bosque. Fundado no século XII e várias vezes reconstruído e acrescentado, o principal interesse de Strahov não está tanto na arquitectura, ou nos monges que ainda habitam o mosteiro (e que passaram ao longe, quando o sino tocou, numa revoada apressada de hábitos brancos), mas na sua biblioteca, dividida pelas Salas Filosófica e Teológica. São mais de oito séculos de livros, com predominância de textos religiosos e teológicos, estudos de biologia, astronomia e física, as obras dos grandes filósofos e alguns antifonários para o acompanhamento das diferentes horas monásticas. Em qualquer das salas, a visão é impressionante, de um modo que as imagens nunca poderão explicar. O silêncio e o facto de as salas estarem vazias de qualquer presença humana, contrastando com a riqueza que se adivinha por detrás das lombadas, criam uma solenidade difícil de descrever. Para além da beleza das estantes, dos tectos, dos objectos e do mobiliário, creio que a solenidade advém tanto da presença dos milhares de livros como da impossibilidade de nos aproximarmos deles. Por razões de preservação patrimonial, os visitantes têm o acesso restrito à porta de ambas as salas, de onde podem contemplar a imensidão bibliográfica. E isso, apesar de compreensível, cria uma angústia que só a visão da beleza de ambos os espaços serena um pouco. A vontade de entrar, folhear os livros, passar algum tempo a elaborar um plano meticuloso de leitura e estudo, mesmo sabendo que o tempo de vida útil não chegaria para todas as espécies presentes, persiste. E persiste do modo mais egoísta, porque o que se deseja é fazer tudo isso sem os grupos que constantemente se aproximam das portas, apontando para os globos e as estantes e falando alto. O que se deseja, ao fim de alguns minutos de contemplação, é deixar as pessoas saírem e ficarmos nós ali, no silêncio do mosteiro vazio, com a luz que se quebra nas janelas, percorrendo prateleiras e escolhendo leituras.


Sala Filosófica


Sala Teológica

(As imagens são retiradas de postais)

23 setembro 2008

Dose dupla II

Na quinta-feira, às 18h30, a FLAD prossegue o ciclo 'Asas Sobre a América', onde Rui Zink falará sobre Saul Bellow.

No mesmo dia, às 21h30, a Casa Fernando Pessoa recebe mais uma sessão dos Livros em Desassossego, desta vez sobre o 'efeito Nobel', a propósito do décimo aniversário da entrega do Nobel da Literatura a José Saramago. Participam o professor universitário Carlos Reis, o crítico e escritor Miguel Real e o editor Zeferino Coelho (Leya/ Caminho). Para além disso, João Tordo apresentará o seu mais recente romance, As 3 Vidas (QuidNovi). Moderação a cargo de Carlos Vaz Marques.

Dose dupla

Mais logo, pelas 18h30, Manuel Alberto Valente assinala o lançamento do primeiro livro da recente Divisão Editorial Literária de Lisboa da Porto Editora, chancela que coordena. As Esquinas do Tempo, de Rosa Lobato Faria, será apresentado por Rodrigo Guedes de Carvalho na Fundação Medeiros de Almeida, em Lisboa.

E às 21h30, na Pó dos Livros, Fernanda Câncio, Rui Tavares e Pedro Mexia debatem a crise financeira norte-americana e a crise politica europeia com João César das Neves, em mais uma sessão 'Nãõ Perca os 3'.

22 setembro 2008

VVAA, Cabeça de Ferro, Imprensa Canalha



Desde o início da sua actividade, em 2006, a Imprensa Canalha tem sido responsável por edições que congregam a minúcia no ofício de fazer livros e a vontade de atribuir visibilidade a um conjunto de autores que, circulando entre a banda desenhada e a ilustração, começam a configurar um caso raro de coerência artística e programática, sem com isso perderem a afirmação das suas vozes individuais.
Com a participação de dezasseis autores, Cabeça de Ferro é uma antologia gráfica sobre a Revolução Industrial. O prefácio do arqueólogo Luís Luís é elucidativo do programa que orienta o volume: não se trata de reunir versões historiográficas através da banda desenhada ou da ilustração, mas antes de reflectir sobre um dos momentos de viragem da História a partir do seu carácter fundacional. Nesta antologia, as marcas da mudança introduzida a partir do século XVIII não se associam ao simples deslumbre pela inovação tecnológica, mas antes incorporam nessa enorme mutação da sociedade a marca intemporal de todos os vícios e virtudes que configuram a natureza humana. É dessa perspectiva comum que os artistas partem para a construção de imagens ou sequências, ainda que cada um o faça de modo individual.
Por entre as várias colaborações, que incluem nomes como Filipe Abranches, Pedro Burgos, José Feitor ou Richard Câmara, a de Dr. Orango constitui um ponto de vista revelador da abordagem que todo o livro configura. São dez pranchas em sequência alternada: de um lado, num registo composto por silhuetas, encena-se o advento do automóvel no quotidiano, primeiro como raridade de luxo por entre carroças puxadas a cavalo e senhoras de sombrinha passeando a pé, mais tarde como elemento essencial e omnipresente, sufocando todo o espaço imagético disponível ao mesmo tempo que os desastres se multiplicam numa inevitável violência; do outro lado, com traço e pormenores definidos, a evolução da indústria automóvel e de tudo o que se lhe associa, das linhas de montagem à aglomeração de carcaças metálicas em lixeiras. Entre o quotidiano de seres humanos concretos e as implicações sociais, económicas e políticas de uma mudança fundadora, o embate deixa marcas sobre as quais importa reflectir.

Sara Figueiredo Costa
(Texto publicado no suplemento Actual do jornal Expresso, 30 Agosto 08)

Literatura Infanto-Juvenil em Fórum

A iniciativa é da Bruaá e pretende juntar todos os que, de modo mais ou menos directo, se relacionam com a literatura infanto-juvenil (incluindo os que não acreditam muito na adequação desta 'etiqueta'...). O Fórum da Literatura Infanto-Juvenil está alojado aqui e quer ser um espaço animado de discussão e troca de informações em torno do tema.

Philip Roth aos 75 anos

Com o novo livro, Indignation, já disponível nas livrarias, Philip Roth conversa com Robert McCrum sobre o seu trabalho, a disciplina da escrita e o tempo que passa.

"Similarly, Roth can't quite believe his age. 'I'm 75, a strange number,' he volunteers. 'It's a strange discovery, for me at any rate. In your early years you don't go to funerals every six months.' Among his peers, there has been a steady winnowing: Arthur Miller, George Plimpton, Kurt Vonnegut, and most recently, Norman Mailer. These were not all close friends, but he knows he's playing in injury time."

Para ler na íntegra, aqui.

Machado de Assis

Cem anos depois da morte de Machado de Assis, a Fundação Calouste Gulbenkian e a Missão do Brasil Junto à CPLP organizam um colóquio internacional sobre a sua obra.



O programa completo está disponível aqui.

21 setembro 2008

Crónicas do Baú IV

       Com algumas memórias ainda frescas de manifestações e assembleias estudantis, e com dedicações mais recentes a outros movimentos, ficaria bem começar esta crónica falando da influência de algumas leituras ‘revolucionárias’ na minha formação juvenil precoce, do Pequeno Livro de Marx Explicado aos Pequeninos ou da infância passada às cavalitas de alguém entre o 1º de Maio e uma qualquer reunião. Mas seria mentira, claro. Em 68 ou em 74 eu não existia. Isso custou-me durante alguns anos, sobretudo durante as manifestações, e às vezes ainda acho que perdi o melhor da festa, mas nada a fazer. E o meu Capital, Livro Vermelho ou Revolução Permanente chamou-se Os Sótãos Furados e hoje, quando penso nisso, concluo que talvez tenha ficado melhor servida. Desde logo, porque aprendi mais cedo que o esperado que havia palavras portuguesas com dois acentos. Pode parecer pouco, mas para quem tinha o fascínio das letras e a vontade de querer escrever sem mácula (mais do que 0 erros nos ditados costumavam deixar-me à beira da depressão, o que, vejo agora, devia fazer de mim uma miúda um bocado chata, facto apenas compensado por saber jogar bem à bola), era uma conquista. Mas centremo-nos nos sótãos.



       Na colecção ‘Picapau’, da Verbo, que tinha começado a ler há um ou dois anos, o volume de Os Sótãos Furados foi dos últimos que li. Talvez porque tinha uma única história, em vez das habituais três ou quatro, e eu achasse que livros com uma só história eram exclusivo de outras colecções (como a do Círculo de Leitores, onde tinha lido O Feiticeiro de Oz), achei sempre que aquele livro não fazia parte dos outros e tratei de o deixar de lado. E quando finalmente lhe peguei, não podia prever o efeito. Para quem não conheça o texto, a história de Os Sótãos Furados é a de duas crianças que vivem numa rua muito parecida com aquele em que eu vivia, com a diferença de terem acesso (e exclusivo, ainda por cima) ao sótão do seu prédio, local de brincadeiras e leituras várias. Foi assim que, nas primeiras páginas, tudo o que o livro conseguiu produzir em mim foi um enorme sentimento de inveja, coisa pouco saudável se pensarmos na ideia bonitinha de crianças leitoras que aprendem as coisas boas da vida nas páginas que lêem, mas talvez muito saudável se não acharmos que a leitura ‘serve’ para isso. E para mim, naquela altura, os livros não tinham ‘serventia’; estavam lá, guardavam mundos que eu queria conhecer, faziam medo, desafiavam, obrigavam-me a abrir os olhos e a procurar. Seria isto algo parecido com aquela ideia dos livros que nos salvam, mas felizmente só mais tarde vi a coisa desse prisma, o que me garantiu alguma sanidade mental. Assumida a inveja, até pela impossibilidade de ocupar o sótão do meu prédio (ocupado por um casal sui generis: ela, de voz potente e desbragada, capaz de dizer um chorrilho de palavrões enquanto a minha mãe ainda estava a pensar no gesto de nos tapar os ouvidos, ele, fumador compulsivo de ‘mata-ratos’, com dois cães anões de chocalho ao pescoço que o acompanhavam para a caça – como é belo o nosso Portugal, da serra ao subúrbio – e que obrigavam todos os vizinhos a tomarem conhecimento da madrugada em que a época dos tiros se iniciava), passei adiante. Numa tarde de brincadeiras, os dois irmãos ouvem uma pancada na parede, seguida do aparecimento de um par de olhos no fino tabique que delimitava o seu espaço. Ao lado desse sótão, um outro, igualmente território de uma criança. Uniram-se os dois primeiros sótãos por acidente, mas o movimento que daqui surgiria havia de revolucionar a rua inteira! Em dias sucessivos de adrenalina infantil, os miúdos deram cabo das paredes que os separavam do vizinho, descobrindo mais vizinhos da mesma idade e as vantagens de brincar em grupo. No fim do livro, a rua inteira tem uma fileira de sótãos unidos por portas improvisadas, na sequência de assembleias para tomar decisões e de arriscadas operações em segredo, para os pais não darem cabo da festa. E claro que no último sótão se revela uma descoberta, envolvendo o velho que vende balões na rua, mas isso na altura não pareceu nada previsível, o que só confirma que há livros que nos podem mudar a vida, desde que lidos na altura certa.
       Olhando para este enredo, e mesmo não fazendo a menor ideia de quem seja Maria do Carmo de Almeida, é óbvio que tudo isto cheira a cravos e a boas intenções para com a infância no fervor revolucionário pós-Abril. Afinal, se a festa tinha sido bonita, pá, para toda a gente, os putos também tinham direito ao seu quinhão, nem que fosse de sótãos ocupados e ruas libertadas do cinzentismo dos prédios e dos trabalhos de casa a horas certas. Só que eu, com oito ou nove anos e sem sótão para ocupar, ainda não tinha tido a minha revolução. E queria uma. Faltavam-me, é claro, os soldados do MFA e o povo disposto a lutar, mas tinha a minha cadela Joana, e isso superava todas as organizações. Se eu e a Joana, sem a ajuda de ninguém, fazíamos tanto estrago, era mais do que certo que aquela revolução estava ganha. Nessa altura, o passeio da tarde com a Joana pela trela estava por minha conta e isso garantia-me a ocasião e os reforços necessários. E foi assim que começámos (está bem, comecei eu) a observar o topo dos prédios do Monte Abraão com a atenção de um falcão. Com um levantamento satisfatório dos prédios cujas portas fechavam mal, passámos à segunda etapa e lançámo-nos, escadas acima, até aos últimos andares. E nessa altura aprendi duas coisas sobre os prédios suburbanos: primeiro, que a maioria dos pequenos caixotes de cimento que se vislumbravam do lado de fora com toda a pinta de serem um sótão pronto a ocupar eram, apenas, a caixa do elevador; segundo, que os sótãos propriamente ditos estavam invariavelmente trancados. E aqui, o fervor revolucionário foi esmagado num instantinho pelo peso da responsabilidade, e pelo pavor de imaginar a reacção materna quando descobrisse que eu – com a Joana pela trela – andava a invadir a propriedade alheia. Depois de alguns meses desta dura clandestinidade e da indecisão sobre entrar ou não entrar pelas portas trancadas, lá contei o plano à minha irmã, que conseguiu pôr-me algum juízo na cabeça, explicando que os sótãos serviam de arrumação, que as pessoas os trancavam e que dificilmente haveria miúdos a brincarem lá dentro. E eu cedi, nada convencida, e ainda reli o livro umas duas ou três vezes, na esperança de viver no texto aquilo que não podia viver de facto. E depois ainda cultivei a infelicidade de não ter um sótão durante mais algum tempo, antes de passar a outras empresas, e imagino que a minha irmã terá sentido algum alivio por não ver a sua irmã mais nova enredada nas teias do crime à conta de uma senhora que só queria escrever histórias edificantes para os petizes. Pela minha parte, estarei eternamente grata à Maria do Carmo de Almeida. A minha revolução dos sótãos ficou por cumprir, mas a disponibilidade para, às vezes, deitar uma ou outra parede ao chão ainda cá anda. E o único velho de barbas que começou tudo isso foi mesmo o velho dos balões.

20 setembro 2008

Leituras de fim de semana

No Guardian, Christopher Tayler escreve sobre David Foster Wallace.
E no Telegraph, o dossier semanal é dedicado aos vilões da literatura.

19 setembro 2008

Coisas imperdíveis



Dia 23, à`s 21h30, na Pó dos Livros.

Drogas e literatura

Enquanto penso que talvez devesse considerar o consumo de cidreira ou valeriana para ver se passava a ter sono mais cedo, descubro, no Hoja Por Hoja, um texto de Jorge Hernández Tinajero intitulado "La droga en el librero". Para ler aqui.

18 setembro 2008

Da Galiza

"Hipopótamo (babilonio)"

Ser un pousón. Ter mundo (subacuático).
Pousón do subacuático, animal de pel mol,
un animal con paxaros no lombo
(no pouquiño do corpo que levanta das augas).

Estar no río (a cousa heraclitana) a catro patas.
Te-las orellas a rentes das augas,
tirar por veces as ventas das augas.
Vivir na lama.

-Je suis l'hipopotame, le veuf, l'inconsolé,
le prince ad aquas, Taine a la tour abolie.


Manuel Outeiriño, in Deposito de Espantos, Edicións Positivas, 1994

NOTA: Esta será, a partir de hoje, uma rubrica frequente neste blog, com o intuito de divulgar alguma da melhor literatura galega, recente e não só. Discussões ortográficas à parte, que eu também tenho as minhas opiniões sobre a norma vigente para o galego e o reintegracionismo, mas esse não é um tema sobre o qual se decida de ânimo leve, os textos serão reproduzidos tal e qual como foram publicados.

17 setembro 2008

Outros modos de arrumar as estantes

Títulos, autores, géneros, cores... Ou então, organizar as lombadas de modo a que os livros falem connosco.

Livros de Bolso

Muito brevemente, a Leya terá uma colecção de livros de bolso nas livrarias e em vários espaços comerciais do país. Chama-se Bis e entre clássicos, contemporâneos, portugueses e estrangeiros, imperdíveis e de sucesso, há títulos para todos os gostos e a escolha parece acertada, sobretudo tendo em conta a disponibilidade dos catálogos das várias editoras agora unidas sob a mesma chancela.
Mas o nome... Com tantos nomes, expressões, siglas, acrónimos e marabalismos linguísticos possíveis em português, não se arranjou nada menos parecido com a BI (a colecção de livros de bolso, precisamente, que resultou da cooperação entre a Assírio & Alvim, a Cotovia e a Relógio d'Água)?

16 setembro 2008

Tudo o que uma capa pode dizer

No Bookseller, um artigo de Simon Creasy dá conta de algumas diferenças essenciais entre as capas de livros feitas nos EUA ou no Reino Unido. Para ler aqui e descobrir (ou confirmar) que há coisas que a velha Inglaterra não tolera mudar... E quanto a mim, olhando para alguns exemplos de capas, ainda bem.

15 setembro 2008

Arrastados

Ainda não se conhecem os contornos do processo, estando por apurar se o arrasto do Pedro Sales e do Pedro Vieira para o blog do Daniel Oliveira foi violento e de arma em punho ou pacífico. Mas o certo é que eles já lá estão e o Arrastão é agora um blog colectivo, ainda por cima cheio de opções que aproveitam bem as novas (ainda se podem chamar 'novas'?) tecnologias e com uma tal 'Santa Aliança' - um agregador de blogs que podem ser acompanhados numa mesma página - que inclui este modesto Cadeirão entre uma série de outros blogs sobre política e cultura escritos por gente de esquerda. Deixemo-nos arrastar, que a coisa promete animar.

O caderno de Saramago (ou o dia em que Saramago chegou à blogosfera)

Com a notícia da conclusão do seu próximo romance já para trás, José Saramago acaba de inaugurar um espaço mais pessoal no blog da Fundação com o seu nome. Intitulado 'O Caderno de Saramago', as suas páginas abrem com a redescoberta, entre papéis velhos, de um texto sobre Lisboa que o autor partilha com os leitores. Ao texto propriamente dito, segue-se uma montagem vídeo que selecciona excertos do texto e muitas imagens sobre Lisboa, com a companhia sonora de Carlos Paredes. Se a anunciada disciplina do autor de O Ano da Morte de Ricardo Reis se concretizar, temos blog!

Novidades Quasi

Vêm aí Férias de Agosto, de Cesare Pavese, Poemas Escolhidos, de Elio Pecora, Pequena Enciclopédia da Noite. 50 Poemas, Carlos Nejar e Os Esquilos de Long Island, de Jorge Reis-Sá. São as propostas da Quasi para a rentrée que ainda não se instalou.

Leituras

No Guardian, Ruth Rendell escreve sobre Conan Doyle e Sherlock Holmes. Para ler aqui.

12 setembro 2008

Isabel Minhós Martins e Bernardo Carvalho, O Mundo Num Segundo, Planeta Tangerina



       A arrumação dos livros em categorias etárias de recepção poderá garantir algumas vantagens didácticas e de mercado, mas tende igualmente a eliminar as particularidades que fazem de cada livro um objecto único e de cada conteúdo, verbal ou pictórico, um universo, aberto a outros universos. Um álbum ilustrado é um álbum ilustrado; nem é mais fácil de ler porque tem imagens, nem se destina exclusivamente às crianças que ainda não conhecem as letras, e sobretudo não recorre à ilustração como mero acrescento visual ao texto. O Mundo Num Segundo, de Isabel Minhós Martins e Bernardo Carvalho, é um bom exemplo de um trabalho autoral em torno do objecto livro que procura acentuar a harmonia entre texto e imagem (de tal modo que a dependência se torna mútua e equivalente), criando um livro que se desenvolve a partir de um conceito narrativo e visual ancorado numa certa deriva filosófica. O livro apresenta um percurso por diferentes partes do mundo, com os fusos horários por referência (apresentada nas guardas finais, sob a forma de um planisfério) e uma amostra da imensidão de acontecimentos que fazem da vida uma narrativa indefinível, mas passível de aproximações – textuais, interpretativas, visuais... –, como esta. No centro, a subversão de duas categorias essenciais: o tempo, suspenso, e o espaço, sequencializado, estruturam esta narrativa, com as cenas a remeterem para o momento exacto da suspensão temporal (a bola que voa em direcção a uma janela, na Grécia, mostra-se estacada em pleno voo, um pouco antes de partir, ou não, o vidro) e a sua sucessão a marcar o ritmo compassado de um percurso pelo globo.
       O acto de percorrer o planisfério associa-se à sequência, convocando uma leitura que, podendo fazer-se a diferentes níveis, permite várias respostas à indagação sobre o mundo e a infinitude de coisas que acontecem em simultâneo. Independentemente do leitor e da sua idade, a inquietação prevalece e O Mundo Num Segundo constrói uma visão do mundo enriquecida por pormenores e pequenas histórias possíveis dentro da estrutura principal, abrindo a leitura a um potencial de visões, muito para lá da simplicidade com que, por vezes, se encaram os livros ilustrados.

Sara Figueiredo Costa
(Texto publicado no suplemento Actual do jornal Expresso, 9 Agosto 08)

11 setembro 2008

A alma de cada cidade: um post de felicitações

Conheço poucas cidades estrangeiras (e tenho pena), mas em todas as que já visitei ou onde estive algum tempo há sempre uma ou mais livrarias a definirem os momentos que a memória decidiu guardar.
Londres será sempre Londres, é claro, mas as ruas onde passeei, os museus que vi, os pubs onde bebi e conversei, todas as memórias que guardo da cidade seriam pobres sem incluir nelas as livrarias da Charing Cross, aquela loja de banda desenhada perto do British Museum e um certo alfarrabista que me levou à ruína. E nem é preciso pensar tão alto. Qualquer habitante de Serpa, Montemor-o-Novo ou Braga sabe que as suas cidades não seriam as mesmas sem o espaço, os serviços e o convívio da Vemos, Ouvimos e Lemos, da Fonte de Letras e da 100ª Página. Parece um pormenor insignificante, mais uma livraria, menos uma livraria, mas apenas para quem não sabe que os livros nos podem mesmo salvar.
E todo este solilóquio vem a propósito de quê? Do primeiro aniversário da Pó dos Livros, cumprido ontem sem grande alarido. Quem conhece o local sabe do que falo. Quem não conhece, tem de estar consciente do que anda a perder. As Avenidas Novas já tinham alguns locais dignos de ocupar um espaço privilegiado na relação de cada um com Lisboa, é certo. No meu caso, a Gulbenkian, a FCSH e o Nimas serão sempre locais que me fazem pertencer à cidade onde vivo e dos quais guardo memórias que me definem. Mas, e livrarias? Sim, houve a Arco-Íris, mais marcante pela ampla oferta bibliográfica que tinha e pelo serviço de encomendas de livros ‘académicos’ do que pelo espaço acolhedor (para quem não se lembre, ficava dentro de um centro comercial algo decrépito) ou pelo ambiente. Houve também a Tema, que durou pouco tempo, e que eu conheci mal, apesar dos conselhos sempre sábios do meu amigo Rui. E há a Bulhosa, mas fica fora do raio sentimental que o meu mapa estabeleceu e já não tem o interesse de há dez anos, quando havia fanzines e livros de poesia com tiragens limitadas, livreiros que conversavam de ser humano para ser humano, e não de vendedor para cliente (agora não sei como estará, mas há poucos anos era assim e não era bom) e o Olímpio, sempre com um livro ou muitos para aconselhar. Essas Avenidas Novas deixaram de ser o meu espaço afectivo quando mudei de casa e de vida, passando a habitar o território nostálgico da memória, e isto apesar de visitas constantes. Quando a Pó dos Livros abriu, começou uma nova vida para as ruas onde em tempos passei parte considerável dos meus dias. O espaço, acolhedor, a selecção de livros, exigente e completa, e a disponibilidade de quem lá trabalha, tanto para os serviços que se esperam de uma livraria como para a conversa em torno dos livros, fizeram daquele lugar uma livraria 'a sério'. Não é um lugar onde vamos comprar um livro concreto nem o sítio onde podemos encomendar livros estrangeiros, embora possamos fazer ambas as coisas; é um espaço com identidade, uma loja que, adivinhamos na primeira visita, guarda tesouros, revelações, portos seguros e até desilusões. Os livros da Pó dos Livros podiam bem estar quase todos na estante de nossa casa, e até as estantes podiam estar em nossa casa, bem como o sofá, os candeeiros ou os pequenos objectos que se espalham pelas prateleiras, marcando pontos aleatórios como as afinidades que vamos estabelecendo com algumas páginas lidas. Os livros que nos salvam são, ali, uma realidade tangível e é isso que faz da Pó dos Livros uma livraria 'a sério'. Não tem figuras recortadas de escritores famosos em tamanho natural nem os livros todos que saíram para o mercado na última semana. Tem livros velhos, já usados, fundos de edição que esperam pelo leitor que os vai resgatar do esquecimento dos anos e livros de que os jornais não falaram. Tem alma, seja lá o que isso for. Como o tal alfarrabista da Charing Cross, a velha Leitura do Porto ou a Couceiro, em Santiago de Composela, ali tão perto da padaria com os melhores palmiers de chocolate do mundo, com o Alexandre e o Damián a discutirem se o melhor para o futuro do galego seriam as terminações em –ión ou em -om... E como outras livrarias que Lisboa vai vendo aparecer ou que ainda preserva. Mas é esta que faz anos e, recostada no Cadeirão, aqui lhes deixo um brinde e votos de prosperidade (e para a semana passo lá para resgatar o meu Kurt Vonnegut novo-velho, pode ser?).