20 junho 2008

Visitas no Cadeirão

De vez em quando, será assim, e o Cadeirão receberá visitas de amigos com leituras para partilhar. Confortavelmente instalados sob a luz do candeeiro e com o omnipresente gato ao colo, deixá-los-emos à vontade para falarem. A primeira visita, que se espera reincidente, é do Pedro Viera de Moura, que os mais atentos conhecerão pelo seu labor atento, minucioso e abrangente em torno dos territórios da banda desenhada (disponível sobretudo no blog Ler Bd). O motivo: Cadernos de Fausto, de Rafael Dionísio, recentemente editado pela Chili Com Carne. A palavra ao Pedro, cuja colaboração muito agradecemos:




Rafael Dionísio avança com duas medidas nos seus livros, uma delas a que se poderá dar o nome de “romance” (A Sagrada Família, Lucrécia), com toda a história que esse género acarreta, não obstante o trabalho de minar o romance que o escritor explora (também essa opção com uma longa, lenta mas contínua história), e outra o de “prosa poética” (Textos mais ou menos poéticos e, agora, Cadernos de Fausto). Estoutro termo tem também uma história própria, expoentes, cultivos vários. Nos aspectos que mais importam sublinhar em relação a este livro, importa acentuar que na História da Literatura vários momentos houve de substantivização da matéria literária, um desprendimento dos representamen (Peirce) dos restantes signos para efectuar “ligações directas” (e, sem dúvida, perigosas) entre a coisa literária e o seu sentido próprio. Exemplos? A micrografia hebraica medieval. Os exercícios visuais do Barroco. Alguns dos Himmlische Libes-Küsse de Quirinus Kuhlmann. E toda a história da literatura do século XX está mosqueada de exercícios análogos (“exercícios” não como preparação para, mas antes, etimologicamente, como impedir ao fechamento).

Impedir a um fechamento, quer dizer, impedir que se tenha uma visão ciclópica e de túnel de que para efectuar a matéria literária há um número relativamente limitado, aceitável, concursável, reportável de vias. Rafael Dionísio permite-se a um reemprego de uma linguagem de “vanguarda”, esta agora irremediavelmente historicizada, Rafael Dionísio retorna a ela com essa mesma distância histórica. Há aqui um movimento idêntico àquele verificado na poesia de Nuno Moura, de algum Álvaro Lapa, de Gonçalo M. Tavares (mas não na sua prosa), de uma objectificção das palavras, duma autonomização das palavras face às suas funções no texto, mas que não impede a construção de um sentido inteligível e interpretável, último (diferente, assim, das maiores objectificações, visuais, da Poesia Experimental Portuguesa, de Alberto Pimenta). A recuperação da atitude de vanguarda está num certo tom de desafio, mas ao mesmo tempo constitui-se como gesto de garantir o facto de que tais experiências são válidas, permissíveis e exequíveis (no próprio livro). Não há uma inventabilidade da língua, quer através de um mergulho na etimologia e irmandade das línguas (Joyce) ou na fragmentação articulada-desarticulada (Schwitters), mas uma plena objectificação dos seus elementos – a partir da qual se podem dar moleculares mergulhos e moleculares fragmentações.

Essa objectificação está ao nível da linguagem, da escrita, da matéria literária. Não há porém aqui qualquer “ingenuidade reificadora”: o que se retrata em Cadernos de Fausto não é uma personagem, matéria fictícia e factícia que bebesse de realidade viva e a moldasse de um ou outro modo, mas uma apresentação de uma ideia; irreal, mas uma ideia sua: de novo, matéria literária. Fausto não existe. Não pensamos em (um) Fausto, mas no Fausto das primeiras impressões populares, e depois no de Marlowe, no de Pessoa, de Thomas Mann, acima de todos o de Goethe, e agora no Fausto de Dionísio. Fausto metaforiza-se em absoluto, entendendo a metáfora não enquanto ornato, rodriguinho, mas “instrumento que induz o homem a evitar a realidade” (1).

A canga narrativa do Fausto não interessa nestes Cadernos, alija-se esse peso e “então não símbolos e sim voar mesmo” (pg. 66). Voo válido que vem de experiências do passado “sim” que tem a mesma força que o de Molly Bloom.

Este livro apresenta uma colecção de curtas histórias com este Fausto. É possível identificar momentos e espaços, acções continuadas e repostas, níveis de intervenção. Histórias contadas por uma voz de um narrador externo, o qual, em instâncias esparsas, revela uma intervenção argumentativa, que pode ser entendida tanto como comentário sobre a própria natureza dos Cadernos como surgir claramente como confessio do escritor, como explicação deste trabalho. “o meu templo é a vontade e a violência” (9); “porque é que ainda hoje, depois destes anos todos, porque é que ainda hoje?” (18); uma escrita a nível quântico (labirintório, pgs. 45-46, imediatamente antes de depois de bohr) que implica um movimento “locomotextual” (40). Os ritmos são vários, as direcções múltiplas: “ quem escrever de trás para a frente, o corpo desfaz-se” (77). Podem-se começar a ler estes textos pelo meio, todos eles se encontram a meio, in media res. Não há entrada como não há saída. “(começou a chover e as estrelas foram sendo apagadas com barulho de brasas na água, olhar as coisas, o que ficou semi-destruído na bancada de fausto, e fico estupefacto com as coisas, com os objectos, com os objectos que não consigo compreender, que não consigo perceber o que são, nem os reconheço, nem os restos do mundo)” (23) – tudo é a duas dimensões, as da folha, as da linguagem (linearidade e duração).

No interior dos textos existem estruturas fixas e fortes, frases ou mesmo parágrafos no interior retornando mais tarde, ou mesmo no final, como se fossem refrões, como se fizessem parte de um vilancete, ou uma vaga... Um vaivém, um retomar do fio à meada, uma retractação do autor para que possa, de novo, escrever o que não dissera ou como o não dissera. “- acreditas no que dizes?/- não.” (126). Não se tratando de um palimpsesto, todavia, pois tudo é deixado visível e legível.

Há como que um efeito cintilante, ou seja, em que o brilho do sentido não é ininterrupto e pouco ilumina, perfazendo-nos um caminho, mas pulsa antes em breves fulgurâncias que, no entanto, nos permitem adivinhar um qualquer curso, que difere entre cada leitor ou mesmo, num leitor, a cada leitura. Apenas esperamos que haja coincidência no ponto de chegada e, mesmo assim, se não o for (chegada, pois não há saída), não será trágico. Esse encerramento no espaço literário de interpretação aberta obriga-nos a refocinhar no texto, nas pilhas de caruma e limo e matéria textual que parece ter sido deixada ali a morrer e a decompor-se em húmus por uma primeira escrita, em busca das poucas trufas que podemos identificar como recuperáveis à luz de uma linguagem textual mais convencional, mas sem que os nossos focinhos não fiquem impregnados pela humidade fértil e os sugestivos aromas dessa primeira matéria. Todos os sentidos operam nesse canto florestal – citam-se florestas, uma?, várias? -, de conto a conto, não criando a ilusão de personalidade sobre Fausto, como vimos, mas como caminho esotérico. A floresta à qual retorna vezes sem conta tratar-se-á tanto daquela da “ficção” (Eco, falando dos sendeiros dos textos) como a que marca a “metade da vida” (em Dante). Sempre metades, sempre labirintos. Nos Cadernos de Fausto, um minuto cabe num infinito. Isto não é banal, é apenas uma ligeira torção da percepção, de captar no natural aquilo que o ultrapassa e transcende, o que não é o mesmo que “capturar o infinito num minuto”. Também os rizomas são citados, quer enquanto órgão vegetal quer enquanto o conceito deleuziano (citado textualmente), abrindo de novo como metades, como entradas e saídas.

Fausto é pertença do texto, preso à liminar falha entre o que separa o autor do seu objecto criado: “eu não sou o fausto” (94), “fausto é a minha sombra” (128), “fausto é uma fraude” (62), “esse martírio dentro do mal” (96), “fausto é um não-humano. uma mistura de vários aparafusados. ele é o labirinto. o minofausto, o dédalo dedilhando labirintástases, (...)” (40). Este Fausto tenta várias formas de suicídio – alguns deles conseguidos, sendo o retorno da morte não paradoxal, mas próprio da sua figura literária. “havia quem dissesse que fausto tinha perdido a razão. Pobres diabos, não era com a razão que ele trabalhava” (88).

Ele é puro atributo do texto. “talvez seja melhor agora dedicar-me mais a comunicar com fausto, pode ser que ele me ajude, mas acho que ele se está bem nas tintas” (37). Há uma clara separação de “personagens”, umas das outras, mesmo que obedeçam a um mesmo nome significativo, como elas da voz narradora. Trabalho literário (i.e., “com letras”), não “criar mundos fictícios e ficcionais”. Inscreve-se, portanto, nessa longa tradição da “desumanização da arte” que acompanha, que é mesmo parte integrante do programa da modernidade, e de que Ortega y Gasset deu conta. “Vida é uma coisa, poesia é outra”, são esferas separadas, tais como são esferas separadas as disciplinas da arte, por mais que a contemporaneidade as queira dissolver, misturar e cruzar (2).

Num ou outro momento, citam-se as diáclases, “fracturas naturais na rocha”, conforme o dicionário – revelando parte da formação académica do autor? Interessa ainda o biografismo para a leitura dos livros? Pois é isso mesmo o que Rafael Dionísio cria em Cadernos de Fausto, diáclases na rocha, brechas naturais no espaço literário, que se quedam fora do entendimento das “pessoas normais”, nos Cadernos de Fausto definidas como “divindades mórbidas em pequenas bolsas de ar presas na rocha” (102). Estas são aquelas que não se esforçam por alcançar o espaço literário por si mesmo, esperando dele apenas a fonte contumaz de entretenimento e confirmação existencial. Caem nas diáclases do espaço literário, nelas ficam presas, mas nenhum movimento apreendem nele. Farão parte dos que se defendem, como o ignorante face à obra de arte, “isto não presta”, revelando não sentir sequer a curiosidade de permitir-se a um esforço de compreensão. Não se trata de não gostar, distância valorativa a que terá direito; trata-se de não querer dar-se a si mesmo sequer essa condição de possibilidade, gesto bem mais grave. São as “estupidezes”, “prepotentes, sobranceiras” combatidas, vilipendiadas, espezinhadas e deitadas a língua de fora no capítulo contra as pessoas (91-93).

No momento em que o Fausto de Goethe está prestes a selar o pacto com Mefistófeles, desafia-o, dizendo-lhe que se alguma vez lhe disser, em relação ao “momento fugaz”, “Verweile doch! Du bist so schön!” (“Demora-te! És tão belo!”), se alguma vez se deixar adormecer nas benevolentes, indolentes e doces oferendas do diabo, que este lhe tire a vida. No fim, Fausto perde a aposta, ainda que seja alforriado pelos anjos. O Fausto de Dionísio é a sombra que perdeu a aposta e ficou encravada nesse belo e demorado momento fugaz, nessa brecha, feito só de texto.

(1) Todo este parágrafo a partir do prólogo de Maria Filomena Molder, “Equivalências e intempestivas”, ao livro de José Ortega y Gasset, [La deshumanización del arte, 1925] {trad. port. Manuela Agostinho e Teresa Salgado Canhão, A desumanização da arte. Vega: Lisboa 2003 [3ª ed.]; para citações, v. pgs. 36-37, e 33.

(2) Com Ortega y Gasset, op. cit., pg. 96.

Texto de Pedro Vieira de Moura

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