A exposição Pronto-a-Ler. Design de Livros em Espanha inaugura amanhã no Palácio Pombal, sede cultural do IADE (à Rua do Alecrim, em Lisboa), e estará patente até ao dia 10 de Agosto. A mostra reune mais de 400 livros editados em Espanha, entre 2000 e 2006, ilustrando a preocupação com os aspectos gráficos que forma parte intrínseca do cuidado com a edição (ou, pelo menos, com alguma edição).
A acompanhar a exposição, duas mesas redondas e um seminário: no dia 2 de Julho, a abertura académica da mostra inclui uma mesa redonda, moderada por Bárbara Coutinho (Museu do Design e da Moda), com a participação de dois editores, um espanhol e um português (não designados), bem como intervenções sobre o design de livros, a cargo de Jorge Silva e João Bicker. No dia 8 de Julho, um seminário com Henrique Cayatte e Manuel Estrada. No dia 15 do mesmo mês, um seminário sobre 'Capas Portuguesas', orientado por Jorge Silva.
Como se lê no convite, "tanto a exposição, que depois da sua exibição em Nova Iorque, Washington, México DF, Buenos Aires, São Paulo e Madrid, como as mesas redondas e o catálogo que a complementam, constituem um projecto destinado a promover o conhecimento mútuo e as relações de cooperação entre designers e editores de Espanha e os países anfitriões, mas sobretudo pretende convocar os inúmeros e afortunados amantes desse complex e fascinante objecto a que chamamos livro e que vive entre nós há mais de 500 anos."
30 junho 2008
29 junho 2008
Crónicas do Baú III
O maior e mais acicatado debate que pode desenrolar-se em torno da dita literatura juvenil prende-se, em Portugal, com a oposição Cinco / Uma Aventura. Há outros debates decorrentes deste: Cinco por oposição a Sete, Cinco e Sete versus As Gémeas, etc... São tudo debates que podem começar numa alegre sessão nostálgica e acabar com insultos entre amigos que descobrem, de repente, que os seus oponentes nunca compreenderam o fascínio dos scones ingleses com geleia ou, em alternativa, a maravilha de embarcar em aventuras rocambolescas com um caniche como uma das companhias, mas não creio falhar se disser que a escolha entre os Cinco e Uma Aventura reúne as intervenções mais apaixonadas, pelo menos pela geração que apanhou ambas as séries. A minha posição é muito peremptória, como convém a tais debates: Os Cinco são infinitamente melhores. Desde logo porque a escrita de Enid Blyton aproveita de modo exemplar a herança literária anglo-saxónica, sabendo incorporar tudo o que alguns clássicos legaram (Mark Twain, Daniel Defoe ou C.S.Lewis, por exemplo), lidando com o humor sem a necessidade do estardalhaço do riso e criando narrativas que, mesmo sendo facilmente situáveis num tempo em que o entretenimento e a descoberta passavam por espaços e brincadeiras bem diferentes das que hoje predominam, possuem um carácter intemporal, marcado pelas descobertas do crescimento, por uma ingenuidade só aparentemente inocente e por um espírito de risco que a consciencialização posterior só pode abrandar. Para além disso, a galeria de personagens criada por Blyton é imbatível, reconhecendo-se com facilidade em leituras posteriores de alguns escritores de gabarito incontestável.
Apesar disso, depois de esgotada a série dos Cinco – e por esgotada quero dizer lida e relida várias vezes – , a leitura de Uma Aventura ganhou o seu espaço. Se a memória não me atraiçoa, o primeiro livro que li foi o volume 3, Uma Aventura na Falésia, que a minha irmã tinha na estante (e penso que foi o único que ainda a apanhou, embora, suspeito, já sem grande entusiasmo). Seguiram-se mais dois ou três, até que me foi oferecido o volume 22: Uma Aventura em Lisboa.
E este, sim, desencadeou alvoroços vários. Pelo que vejo na ficha técnica, a edição é de 1988, o que me coloca nos dez anos de idade. Nessa altura, para além de querer ser veterinária, outro projecto futuro preenchia os meus sonhos: eu queria trabalhar numa rádio pirata, de preferência instalada no meu quarto. Na verdade, um dos cantos do meu quarto tinha sido transformado num estúdio de rádio que, pelas óbvias limitações orçamentais, apenas transmitia para... o meu quarto. Em cima de uma arca branca, para além de um teclado oferecido pelo meu avô, onde eu aprendia os primeiros acordes que haveriam de alimentar sonhos mais tardios, um pequeno gravador de cassetes, um painel de cartão com botões feitos de caricas e, o ex-libris da instalação, um cabo de vassoura ao qual se acoplava, com metros de fita cola, um pequeno microfone feito, pela minha mãe, a partir de um pedaço de madeira, uma bola de algodão e um plástico que envolvia o algodão, amarrado com um elástico. O estaminé garantia horas de entretenimento, com emissões non-stop de discos pedidos, programas informativos e reportagens, tudo acompanhado por algumas notas tiradas do teclado. Acontece que no número 22 de Uma Aventura, o grupo de personagens principais encontra um companheiro, um tal Eduardo que, no sótão do seu prédio, tinha uma rádio pirata. Era o delírio, e mesmo que o sótão do meu prédio estivesse ocupado com moradores (imagino que na sequência de um daqueles golpes de imaginação de senhorios dedicados ao aproveitamento total do espaço, já que nas garagens também vivia gente...), passei a alimentar o projecto de fazer sair a minha rádio do quarto, conferindo-lhe potencial para transmitir para todo o bairro. A Aventura do número 22 centra-se no desaparecimento misterioso de umas jóias, obviamente recuperadas pelos oito amigos, mas o que ocupou para sempre a minha memória foi aquela rádio impossível.
Ora, em 1988, Cavaco Silva era Primeiro-Ministro e estava no segundo ano da sua maioria absoluta. É certo que, com dez anos, eu percebia pouco de política, embora soubesse que, lá por casa, Cavaco não tinha apoiantes. Mas nesse ano, Cavaco ganhou uma feroz opositora em Queluz: eu mesma que, do alto dos meus dez anos, descobri que o Governo ia proibir – ou já o teria feio, não sei bem – as rádios pirata. Não me lembro bem dos contornos do processo, que ouvi em alguns telejornais e que os adultos me terão explicado. Em pesquisas no google encontro algumas referências e uma delas aponta, precisamente, para 1988, o que dará credibilidade às minhas lembranças. Aquilo foi um golpe nos meus sonhos infantis, uma machadada impiedosa no meu futuro radiosamente garantido aos microfones de uma rádio. A partir daquele momento, Cavaco tornou-se num inimigo figadal, do calibre de um Skeletor ou de uma Bruxa do Oeste. Só que, com dez anos, a minha capacidade reivindicativa era diminuta; ainda não tinha descoberto o potencial do megafone nem a possibilidade de organizar protestos através de reuniões e panfletos. Não fiz nada, portanto, limitando-me a vociferar contra o Primeiro-Ministro aos microfones da minha rádio de frequência limitadíssima, para divertimento da família que, imagino eu, ouvia as emissões do quarto sem ter de sintonizar qualquer aparelho. E essas foram, estou certa, as emissões radiofónicas mais duras e críticas que Cavaco enfrentou, mesmo que nunca as tenhas ouvido. Cavaco levou por diante a sua proibição e eu, que graças ao número 22 de Uma Aventura tinha descoberto a possibilidade real de concretizar um sonho, nunca mais lhe perdoei. Anos mais tarde, de megafone nas mãos por entre gigantescas manifestações contra as propinas e uma ou outra saraivada de bastões, aquela ofensa ainda morava no meu rol de queixas e exigências, mesmo que os meus companheiros de protesto nunca o tenham imaginado.
Apesar disso, depois de esgotada a série dos Cinco – e por esgotada quero dizer lida e relida várias vezes – , a leitura de Uma Aventura ganhou o seu espaço. Se a memória não me atraiçoa, o primeiro livro que li foi o volume 3, Uma Aventura na Falésia, que a minha irmã tinha na estante (e penso que foi o único que ainda a apanhou, embora, suspeito, já sem grande entusiasmo). Seguiram-se mais dois ou três, até que me foi oferecido o volume 22: Uma Aventura em Lisboa.
E este, sim, desencadeou alvoroços vários. Pelo que vejo na ficha técnica, a edição é de 1988, o que me coloca nos dez anos de idade. Nessa altura, para além de querer ser veterinária, outro projecto futuro preenchia os meus sonhos: eu queria trabalhar numa rádio pirata, de preferência instalada no meu quarto. Na verdade, um dos cantos do meu quarto tinha sido transformado num estúdio de rádio que, pelas óbvias limitações orçamentais, apenas transmitia para... o meu quarto. Em cima de uma arca branca, para além de um teclado oferecido pelo meu avô, onde eu aprendia os primeiros acordes que haveriam de alimentar sonhos mais tardios, um pequeno gravador de cassetes, um painel de cartão com botões feitos de caricas e, o ex-libris da instalação, um cabo de vassoura ao qual se acoplava, com metros de fita cola, um pequeno microfone feito, pela minha mãe, a partir de um pedaço de madeira, uma bola de algodão e um plástico que envolvia o algodão, amarrado com um elástico. O estaminé garantia horas de entretenimento, com emissões non-stop de discos pedidos, programas informativos e reportagens, tudo acompanhado por algumas notas tiradas do teclado. Acontece que no número 22 de Uma Aventura, o grupo de personagens principais encontra um companheiro, um tal Eduardo que, no sótão do seu prédio, tinha uma rádio pirata. Era o delírio, e mesmo que o sótão do meu prédio estivesse ocupado com moradores (imagino que na sequência de um daqueles golpes de imaginação de senhorios dedicados ao aproveitamento total do espaço, já que nas garagens também vivia gente...), passei a alimentar o projecto de fazer sair a minha rádio do quarto, conferindo-lhe potencial para transmitir para todo o bairro. A Aventura do número 22 centra-se no desaparecimento misterioso de umas jóias, obviamente recuperadas pelos oito amigos, mas o que ocupou para sempre a minha memória foi aquela rádio impossível.
Ora, em 1988, Cavaco Silva era Primeiro-Ministro e estava no segundo ano da sua maioria absoluta. É certo que, com dez anos, eu percebia pouco de política, embora soubesse que, lá por casa, Cavaco não tinha apoiantes. Mas nesse ano, Cavaco ganhou uma feroz opositora em Queluz: eu mesma que, do alto dos meus dez anos, descobri que o Governo ia proibir – ou já o teria feio, não sei bem – as rádios pirata. Não me lembro bem dos contornos do processo, que ouvi em alguns telejornais e que os adultos me terão explicado. Em pesquisas no google encontro algumas referências e uma delas aponta, precisamente, para 1988, o que dará credibilidade às minhas lembranças. Aquilo foi um golpe nos meus sonhos infantis, uma machadada impiedosa no meu futuro radiosamente garantido aos microfones de uma rádio. A partir daquele momento, Cavaco tornou-se num inimigo figadal, do calibre de um Skeletor ou de uma Bruxa do Oeste. Só que, com dez anos, a minha capacidade reivindicativa era diminuta; ainda não tinha descoberto o potencial do megafone nem a possibilidade de organizar protestos através de reuniões e panfletos. Não fiz nada, portanto, limitando-me a vociferar contra o Primeiro-Ministro aos microfones da minha rádio de frequência limitadíssima, para divertimento da família que, imagino eu, ouvia as emissões do quarto sem ter de sintonizar qualquer aparelho. E essas foram, estou certa, as emissões radiofónicas mais duras e críticas que Cavaco enfrentou, mesmo que nunca as tenhas ouvido. Cavaco levou por diante a sua proibição e eu, que graças ao número 22 de Uma Aventura tinha descoberto a possibilidade real de concretizar um sonho, nunca mais lhe perdoei. Anos mais tarde, de megafone nas mãos por entre gigantescas manifestações contra as propinas e uma ou outra saraivada de bastões, aquela ofensa ainda morava no meu rol de queixas e exigências, mesmo que os meus companheiros de protesto nunca o tenham imaginado.
27 junho 2008
Etty Hillesum, Diário 1941-1943, Assírio & Alvim
Passaram mais de quatro décadas até que os Diários de Etty Hillesum, holandesa, judia e intelectual morta em Auschwitz, em 1943, fossem publicados na Holanda, iniciando-se a sua tradução para várias línguas nos anos seguintes. A Assírio & Alvim publica-os agora em português, na colecção Teofanias, tornando acessível um texto que merece inúmeras releituras, não só pela saúde daquilo a que chamamos memória, como pelo abismo de questões e reflexões que cada página convoca.
A capacidade premonitória com que faz uma análise, sempre nítida, do momento histórico que vive tem tanto de assombroso como de angustiante. Etty prepara-se para o campo de concentração como quem sabe, sem espaço para dúvida, que esse passo será inevitável, e ainda assim não o faz de modo resignado ou desistente, ainda que todo o edifício teórico e espiritual que sustenta tal estado de alma seja, em muitos passos da leitura, de difícil assimilação: “«Quando uma pessoa leva uma vida interior, talvez nem haja assim tanta diferença entre estar fora ou dentro dos muros de um campo. » Será que irei conseguir justificar a mim mesma estas palavras mais tarde? Será que as conseguirei pôr em prática?” (p.175). E quando, perto do fim do Diário, esse momento se prefigura para breve, a leitura dos registos dos últimos dois anos torna-se mais clara, como se toda a aprendizagem de si que Etty fez ao longo desse tempo tivesse sido também uma espécie de lucidez crescente, um conjunto de passos cada vez mais seguros para a vivência que se seguiria, e que os leitores já não poderão acompanhar. Apesar disso, a lucidez com que Etty afirma a necessidade de uma memória futura do momento histórico que vive é constante, ainda que a sua opção tenha sido a de construir essa memória menos pela descrição dos factos (“Não quero ser a cronista dos horrores. Há-de haver outros em número suficiente.”, p.326) do que pela análise, levada às últimas consequências da indagação e do auto-enfrentamento, da humanidade e da sua condição.
Sara Figueiredo Costa
(Texto publicado na revista Time Out, nº38, 18-24 Jun 08)
Efeito Borboleta
Efeito Borboleta, o primeiro livro de contos de José Mário Silva, será apresentado mais logo, pelas 18h30, na Casa Fernando Pessoa. Se essa apresentação vai cumprir o título do livro e fazer sentir os seus efeitos nalgum outro ponto da cidade, ainda não se sabe...
26 junho 2008
Lembrança
Hoje é dia de Livros em Desassossego:
Nos 120 anos do nascimento de Fernando Pessoa, a famosa arca continua a ter segredos por revelar e o Ministro da Cultura declarou recentemente que “Pessoa, enquanto produto de exportação, talvez seja mais valioso que a PT”. Na próxima edição dos Livros em Desassossego vamos debater como valorizar (ainda mais) a marca Pessoa, agora que se anuncia o leilão de parte do espólio em poder da família do poeta. Na mesa, para o debate, vão estar o Ministro José António Pinto Ribeiro, a sobrinha do poeta, Manuela Nogueira, o professor universitário António M. Feijó, o investigador Jerónimo Pizarro e o editor Manuel Rosa, que escolherá três livros publicados recentemente que gostaria de ter no catálogo da Assírio & Alvim. A edição de Junho dos Livros em Desassossego realiza-se dia 26, a partir das 21.30, na Casa Fernando Pessoa. Carlos Vaz Marques modera a sessão. A entrada é livre.
Nos 120 anos do nascimento de Fernando Pessoa, a famosa arca continua a ter segredos por revelar e o Ministro da Cultura declarou recentemente que “Pessoa, enquanto produto de exportação, talvez seja mais valioso que a PT”. Na próxima edição dos Livros em Desassossego vamos debater como valorizar (ainda mais) a marca Pessoa, agora que se anuncia o leilão de parte do espólio em poder da família do poeta. Na mesa, para o debate, vão estar o Ministro José António Pinto Ribeiro, a sobrinha do poeta, Manuela Nogueira, o professor universitário António M. Feijó, o investigador Jerónimo Pizarro e o editor Manuel Rosa, que escolherá três livros publicados recentemente que gostaria de ter no catálogo da Assírio & Alvim. A edição de Junho dos Livros em Desassossego realiza-se dia 26, a partir das 21.30, na Casa Fernando Pessoa. Carlos Vaz Marques modera a sessão. A entrada é livre.
Prémios de Edição Ler/Booktailors
Este blog apoia os Prémios de Edição Ler/Booktailors, mas conclui, depois de várias tentativas goradas, que não reúne o engenho necessário para conseguir colocar o logotipo respectivo na barra lateral. Está dito.
Albert Cossery (1913-2008)
No Le Monde, Marion Van Renterghem assina um longo obituário de Albert Cossery. Mas é o Irmão Lúcia que lhe capta o aceno de despedida, simultaneamente lúcido e blasé.
© rabiscos vieira
© rabiscos vieira
Leya bem o regulamento...
Bem sei que a piadinha do título é forçada, mas a hora já vai adiantada e a história merece. O Jorge Reis-Sá deu-se ao trabalho, louvável, de ler o regulamento do Prémio Leya na íntegra e descobriu duas coisas muito interessantes: o júri lerá apenas uma selecção de textos (feita por um comité de leitura que ninguém sabe quem é) e o prémio, na realidade, anda um bocadito longe dos volumosos 100.000 euros anunciados. Para conferir aqui.
25 junho 2008
Doutor Sousa Homem
Hoje, pelas 18h30, na livraria Pó dos Livros, Francisco José Viegas e Maria Filomena Mónica apresentam o livro Os Males da Existência - Crónicas de um Reaccionário Minhoto, de António Sousa Homem (edição da Bertrand). E para quem não conheça a personagem, garante-se que o Dr. Sousa Homem é um verdadeiro reaccionário minhoto, o que pode causar alguma urticária em função dos temas tratados (e às vezes causa, confirma-se), mas um reaccionário que vale a pena ler até ao fim. Fica o aviso.
24 junho 2008
Leituras de férias
«Era, aliás, um caso singular no que às leituras se refere. Era oficial de cavalaria e não apreciava livros. Desprezava igualmente romances e filosofia. Quando lia, não queria ser obrigado a reflectir sobre opiniões e polémicas, mas sim, logo ao abrir do livro, entrar, como por uma porta secreta, no âmago de conhecimentos específicos. Tinham de ser livros cuja simples posse fosse já uma espécie de sinal iniciático de uma ordem e garantia de revelações sobrenaturais. E só encontrava isso nos livros da filosofia indiana, que para ele não pareciam ser apenas livros, mas revelações, coisas reais - chaves de mistérios, como os livros de alquimia e magia da Idade Média.»
(pp. 55,56)
Robert Musil, As perturbações do pupilo Törless, D. Quixote, 2005
(pp. 55,56)
Robert Musil, As perturbações do pupilo Törless, D. Quixote, 2005
E pur si muove!
Mais notícias sobre a renovação da Sá da Costa, associada ao relançamento da Portugália e à livraria Buchholz (estando esta última parte ainda por esclarecer).
No capítulo livreiro, a associação de Livrarias Independentes deu o seu primeiro passo formal no passado Domingo, com a constituição de corpos dirigentes provisórios e de grupos de trabalho que prepararão as actividades futuras.
No capítulo livreiro, a associação de Livrarias Independentes deu o seu primeiro passo formal no passado Domingo, com a constituição de corpos dirigentes provisórios e de grupos de trabalho que prepararão as actividades futuras.
23 junho 2008
António Botto: Obra Completa
As Quasi apresentaram recentemente a edição da obra completa de António Botto, poeta dos mais significativos no século XX português e, ainda assim, nem sempre merecedor da atenção devida. Agora, com edição da responsabilidade de Eduardo Pitta, a obra de António Botto volta às livrarias organizada em oito volumes: Canções e Outros Poemas; Fátima; Cartas Que Me Foram Devolvidas; O Livro das Crianças; Contos; Cantares; Teatro e Ele Que Diga Se Eu Minto. Os dois primeiros já estão disponíveis.
Novidades Bruáa
Depois de A Árvore Generosa, de Shel Silverstein, a Bruáa apresenta agora o seu segundo livro, confirmando todas as boas expectativas que se criaram aquando da chegada deste editora ao mercado português.
Eu Espero, de David Cali e Serge Bloch deve estar a chegar às livrarias por estes dias.
Eu Espero, de David Cali e Serge Bloch deve estar a chegar às livrarias por estes dias.
Se Eu Não Puder Dançar, Esta Não E a Minha Revolução
Mais logo, pelas 19h, na livraria da Assírio & Alvim, Irene Pimentel apresenta o livro Se Não Puder Dançar, Esta Não é a Minha Revolução — Aspectos da Vida de Emma Goldman, de Clara Queiroz.
21 junho 2008
E se falássemos sobre Borges?
Perante um auditório cheio, José Saramago e Maria Kodama conversaram sobre Jorge Luís Borges, acompanhados por Carlos da Veiga Ferreira, da Teorema, editor de Borges em Portugal. Na verdade, Saramago foi fazendo desfilar algumas questões sobre o escritor argentino, a sua concepção da literatura, a sua visão do mundo e os seus dias quotidianos, a que Maria Kodama respondeu com franqueza e pormenor, revelando o prazer inconfundível dos amantes de uma boa conversa. E ainda houve tempo para alguns apontamentos mais pessoais, aqueles que sabemos que pouco importam para o texto que sobrevive ao escritor, mas que se tornam interessantes – por vezes irresistivelmente interessantes – pelo que revelam sobre a pessoa que escreve e sobre o seu modo de estar no mundo.
No fim, Pilar del Rio revelou a boa nova: as actividades da Fundação José Saramago continuarão a passar por sessões deste tipo, cumprindo a função de “agitação em torno de livros e autores, e não apenas daqueles que o mercado privilegia”, e os próximos encontros terão Jorge de Sena, Raul Brandão e José Rodrigues Migueis em destaque.
E a sessão dedicada a Jorge de Sena já tem data marcada. Será no próximo dia 10 de Julho, no Teatro de S. Carlos, e contará com a presença de Eduardo Lourenço, Pedro Tamen, Vítor Aguiar e Silva e Jorge Fazenda Lourenço, para além da participação do pianista António Rosado, que interpretará obras de Debussy e de Mozart. É pôr na agenda.
No fim, Pilar del Rio revelou a boa nova: as actividades da Fundação José Saramago continuarão a passar por sessões deste tipo, cumprindo a função de “agitação em torno de livros e autores, e não apenas daqueles que o mercado privilegia”, e os próximos encontros terão Jorge de Sena, Raul Brandão e José Rodrigues Migueis em destaque.
E a sessão dedicada a Jorge de Sena já tem data marcada. Será no próximo dia 10 de Julho, no Teatro de S. Carlos, e contará com a presença de Eduardo Lourenço, Pedro Tamen, Vítor Aguiar e Silva e Jorge Fazenda Lourenço, para além da participação do pianista António Rosado, que interpretará obras de Debussy e de Mozart. É pôr na agenda.
20 junho 2008
Leituras
Na Rua da Castela, o Jorge Reis-Sá escreve, entusiasmado, sobre as movimentações que se anunciam pelas bandas das livrarias independentes.
Livros em Desassossego
A próxima edição dos Livros em Deassossego procurará responder à questão de como valorizar (ainda mais) a marca Pessoa, tema de que muito se tem falado a propósito dos 120 anos do nascimento do poeta. É no dia 26, às 21h30, na Casa Fernando Pessoa.
Nos 120 anos do nascimento de Fernando Pessoa, a famosa arca continua a ter segredos por revelar e o Ministro da Cultura declarou recentemente que “Pessoa, enquanto produto de exportação, talvez seja mais valioso que a PT”. Na próxima edição dos Livros em Desassossego, já na próxima quinta-feira, vamos debater como valorizar (ainda mais) a marca Pessoa, agora que se anuncia o leilão de parte do espólio em poder da família do poeta. Na mesa, para o debate, vão estar o Ministro José António Pinto Ribeiro, a sobrinha do poeta, Manuela Nogueira, o professor universitário António M. Feijó, o investigador Jerónimo Pizarro e o editor Manuel Rosa, que escolherá três livros publicados recentemente que gostaria de ter no catálogo da Assírio e Alvim. A edição de Junho dos Livros em Desassossego realiza-se na próxima quinta-feira, dia 26, a partir das 21.30, na Casa Fernando Pessoa. Carlos Vaz Marques modera a sessão. A entrada é livre.
Nos 120 anos do nascimento de Fernando Pessoa, a famosa arca continua a ter segredos por revelar e o Ministro da Cultura declarou recentemente que “Pessoa, enquanto produto de exportação, talvez seja mais valioso que a PT”. Na próxima edição dos Livros em Desassossego, já na próxima quinta-feira, vamos debater como valorizar (ainda mais) a marca Pessoa, agora que se anuncia o leilão de parte do espólio em poder da família do poeta. Na mesa, para o debate, vão estar o Ministro José António Pinto Ribeiro, a sobrinha do poeta, Manuela Nogueira, o professor universitário António M. Feijó, o investigador Jerónimo Pizarro e o editor Manuel Rosa, que escolherá três livros publicados recentemente que gostaria de ter no catálogo da Assírio e Alvim. A edição de Junho dos Livros em Desassossego realiza-se na próxima quinta-feira, dia 26, a partir das 21.30, na Casa Fernando Pessoa. Carlos Vaz Marques modera a sessão. A entrada é livre.
Visitas no Cadeirão
De vez em quando, será assim, e o Cadeirão receberá visitas de amigos com leituras para partilhar. Confortavelmente instalados sob a luz do candeeiro e com o omnipresente gato ao colo, deixá-los-emos à vontade para falarem. A primeira visita, que se espera reincidente, é do Pedro Viera de Moura, que os mais atentos conhecerão pelo seu labor atento, minucioso e abrangente em torno dos territórios da banda desenhada (disponível sobretudo no blog Ler Bd). O motivo: Cadernos de Fausto, de Rafael Dionísio, recentemente editado pela Chili Com Carne. A palavra ao Pedro, cuja colaboração muito agradecemos:
Rafael Dionísio avança com duas medidas nos seus livros, uma delas a que se poderá dar o nome de “romance” (A Sagrada Família, Lucrécia), com toda a história que esse género acarreta, não obstante o trabalho de minar o romance que o escritor explora (também essa opção com uma longa, lenta mas contínua história), e outra o de “prosa poética” (Textos mais ou menos poéticos e, agora, Cadernos de Fausto). Estoutro termo tem também uma história própria, expoentes, cultivos vários. Nos aspectos que mais importam sublinhar em relação a este livro, importa acentuar que na História da Literatura vários momentos houve de substantivização da matéria literária, um desprendimento dos representamen (Peirce) dos restantes signos para efectuar “ligações directas” (e, sem dúvida, perigosas) entre a coisa literária e o seu sentido próprio. Exemplos? A micrografia hebraica medieval. Os exercícios visuais do Barroco. Alguns dos Himmlische Libes-Küsse de Quirinus Kuhlmann. E toda a história da literatura do século XX está mosqueada de exercícios análogos (“exercícios” não como preparação para, mas antes, etimologicamente, como impedir ao fechamento).
Impedir a um fechamento, quer dizer, impedir que se tenha uma visão ciclópica e de túnel de que para efectuar a matéria literária há um número relativamente limitado, aceitável, concursável, reportável de vias. Rafael Dionísio permite-se a um reemprego de uma linguagem de “vanguarda”, esta agora irremediavelmente historicizada, Rafael Dionísio retorna a ela com essa mesma distância histórica. Há aqui um movimento idêntico àquele verificado na poesia de Nuno Moura, de algum Álvaro Lapa, de Gonçalo M. Tavares (mas não na sua prosa), de uma objectificção das palavras, duma autonomização das palavras face às suas funções no texto, mas que não impede a construção de um sentido inteligível e interpretável, último (diferente, assim, das maiores objectificações, visuais, da Poesia Experimental Portuguesa, de Alberto Pimenta). A recuperação da atitude de vanguarda está num certo tom de desafio, mas ao mesmo tempo constitui-se como gesto de garantir o facto de que tais experiências são válidas, permissíveis e exequíveis (no próprio livro). Não há uma inventabilidade da língua, quer através de um mergulho na etimologia e irmandade das línguas (Joyce) ou na fragmentação articulada-desarticulada (Schwitters), mas uma plena objectificação dos seus elementos – a partir da qual se podem dar moleculares mergulhos e moleculares fragmentações.
Essa objectificação está ao nível da linguagem, da escrita, da matéria literária. Não há porém aqui qualquer “ingenuidade reificadora”: o que se retrata em Cadernos de Fausto não é uma personagem, matéria fictícia e factícia que bebesse de realidade viva e a moldasse de um ou outro modo, mas uma apresentação de uma ideia; irreal, mas uma ideia sua: de novo, matéria literária. Fausto não existe. Não pensamos em (um) Fausto, mas no Fausto das primeiras impressões populares, e depois no de Marlowe, no de Pessoa, de Thomas Mann, acima de todos o de Goethe, e agora no Fausto de Dionísio. Fausto metaforiza-se em absoluto, entendendo a metáfora não enquanto ornato, rodriguinho, mas “instrumento que induz o homem a evitar a realidade” (1).
A canga narrativa do Fausto não interessa nestes Cadernos, alija-se esse peso e “então não símbolos e sim voar mesmo” (pg. 66). Voo válido que vem de experiências do passado “sim” que tem a mesma força que o de Molly Bloom.
Este livro apresenta uma colecção de curtas histórias com este Fausto. É possível identificar momentos e espaços, acções continuadas e repostas, níveis de intervenção. Histórias contadas por uma voz de um narrador externo, o qual, em instâncias esparsas, revela uma intervenção argumentativa, que pode ser entendida tanto como comentário sobre a própria natureza dos Cadernos como surgir claramente como confessio do escritor, como explicação deste trabalho. “o meu templo é a vontade e a violência” (9); “porque é que ainda hoje, depois destes anos todos, porque é que ainda hoje?” (18); uma escrita a nível quântico (labirintório, pgs. 45-46, imediatamente antes de depois de bohr) que implica um movimento “locomotextual” (40). Os ritmos são vários, as direcções múltiplas: “ quem escrever de trás para a frente, o corpo desfaz-se” (77). Podem-se começar a ler estes textos pelo meio, todos eles se encontram a meio, in media res. Não há entrada como não há saída. “(começou a chover e as estrelas foram sendo apagadas com barulho de brasas na água, olhar as coisas, o que ficou semi-destruído na bancada de fausto, e fico estupefacto com as coisas, com os objectos, com os objectos que não consigo compreender, que não consigo perceber o que são, nem os reconheço, nem os restos do mundo)” (23) – tudo é a duas dimensões, as da folha, as da linguagem (linearidade e duração).
No interior dos textos existem estruturas fixas e fortes, frases ou mesmo parágrafos no interior retornando mais tarde, ou mesmo no final, como se fossem refrões, como se fizessem parte de um vilancete, ou uma vaga... Um vaivém, um retomar do fio à meada, uma retractação do autor para que possa, de novo, escrever o que não dissera ou como o não dissera. “- acreditas no que dizes?/- não.” (126). Não se tratando de um palimpsesto, todavia, pois tudo é deixado visível e legível.
Há como que um efeito cintilante, ou seja, em que o brilho do sentido não é ininterrupto e pouco ilumina, perfazendo-nos um caminho, mas pulsa antes em breves fulgurâncias que, no entanto, nos permitem adivinhar um qualquer curso, que difere entre cada leitor ou mesmo, num leitor, a cada leitura. Apenas esperamos que haja coincidência no ponto de chegada e, mesmo assim, se não o for (chegada, pois não há saída), não será trágico. Esse encerramento no espaço literário de interpretação aberta obriga-nos a refocinhar no texto, nas pilhas de caruma e limo e matéria textual que parece ter sido deixada ali a morrer e a decompor-se em húmus por uma primeira escrita, em busca das poucas trufas que podemos identificar como recuperáveis à luz de uma linguagem textual mais convencional, mas sem que os nossos focinhos não fiquem impregnados pela humidade fértil e os sugestivos aromas dessa primeira matéria. Todos os sentidos operam nesse canto florestal – citam-se florestas, uma?, várias? -, de conto a conto, não criando a ilusão de personalidade sobre Fausto, como vimos, mas como caminho esotérico. A floresta à qual retorna vezes sem conta tratar-se-á tanto daquela da “ficção” (Eco, falando dos sendeiros dos textos) como a que marca a “metade da vida” (em Dante). Sempre metades, sempre labirintos. Nos Cadernos de Fausto, um minuto cabe num infinito. Isto não é banal, é apenas uma ligeira torção da percepção, de captar no natural aquilo que o ultrapassa e transcende, o que não é o mesmo que “capturar o infinito num minuto”. Também os rizomas são citados, quer enquanto órgão vegetal quer enquanto o conceito deleuziano (citado textualmente), abrindo de novo como metades, como entradas e saídas.
Fausto é pertença do texto, preso à liminar falha entre o que separa o autor do seu objecto criado: “eu não sou o fausto” (94), “fausto é a minha sombra” (128), “fausto é uma fraude” (62), “esse martírio dentro do mal” (96), “fausto é um não-humano. uma mistura de vários aparafusados. ele é o labirinto. o minofausto, o dédalo dedilhando labirintástases, (...)” (40). Este Fausto tenta várias formas de suicídio – alguns deles conseguidos, sendo o retorno da morte não paradoxal, mas próprio da sua figura literária. “havia quem dissesse que fausto tinha perdido a razão. Pobres diabos, não era com a razão que ele trabalhava” (88).
Ele é puro atributo do texto. “talvez seja melhor agora dedicar-me mais a comunicar com fausto, pode ser que ele me ajude, mas acho que ele se está bem nas tintas” (37). Há uma clara separação de “personagens”, umas das outras, mesmo que obedeçam a um mesmo nome significativo, como elas da voz narradora. Trabalho literário (i.e., “com letras”), não “criar mundos fictícios e ficcionais”. Inscreve-se, portanto, nessa longa tradição da “desumanização da arte” que acompanha, que é mesmo parte integrante do programa da modernidade, e de que Ortega y Gasset deu conta. “Vida é uma coisa, poesia é outra”, são esferas separadas, tais como são esferas separadas as disciplinas da arte, por mais que a contemporaneidade as queira dissolver, misturar e cruzar (2).
Num ou outro momento, citam-se as diáclases, “fracturas naturais na rocha”, conforme o dicionário – revelando parte da formação académica do autor? Interessa ainda o biografismo para a leitura dos livros? Pois é isso mesmo o que Rafael Dionísio cria em Cadernos de Fausto, diáclases na rocha, brechas naturais no espaço literário, que se quedam fora do entendimento das “pessoas normais”, nos Cadernos de Fausto definidas como “divindades mórbidas em pequenas bolsas de ar presas na rocha” (102). Estas são aquelas que não se esforçam por alcançar o espaço literário por si mesmo, esperando dele apenas a fonte contumaz de entretenimento e confirmação existencial. Caem nas diáclases do espaço literário, nelas ficam presas, mas nenhum movimento apreendem nele. Farão parte dos que se defendem, como o ignorante face à obra de arte, “isto não presta”, revelando não sentir sequer a curiosidade de permitir-se a um esforço de compreensão. Não se trata de não gostar, distância valorativa a que terá direito; trata-se de não querer dar-se a si mesmo sequer essa condição de possibilidade, gesto bem mais grave. São as “estupidezes”, “prepotentes, sobranceiras” combatidas, vilipendiadas, espezinhadas e deitadas a língua de fora no capítulo contra as pessoas (91-93).
No momento em que o Fausto de Goethe está prestes a selar o pacto com Mefistófeles, desafia-o, dizendo-lhe que se alguma vez lhe disser, em relação ao “momento fugaz”, “Verweile doch! Du bist so schön!” (“Demora-te! És tão belo!”), se alguma vez se deixar adormecer nas benevolentes, indolentes e doces oferendas do diabo, que este lhe tire a vida. No fim, Fausto perde a aposta, ainda que seja alforriado pelos anjos. O Fausto de Dionísio é a sombra que perdeu a aposta e ficou encravada nesse belo e demorado momento fugaz, nessa brecha, feito só de texto.
(1) Todo este parágrafo a partir do prólogo de Maria Filomena Molder, “Equivalências e intempestivas”, ao livro de José Ortega y Gasset, [La deshumanización del arte, 1925] {trad. port. Manuela Agostinho e Teresa Salgado Canhão, A desumanização da arte. Vega: Lisboa 2003 [3ª ed.]; para citações, v. pgs. 36-37, e 33.
(2) Com Ortega y Gasset, op. cit., pg. 96.
Texto de Pedro Vieira de Moura
Rafael Dionísio avança com duas medidas nos seus livros, uma delas a que se poderá dar o nome de “romance” (A Sagrada Família, Lucrécia), com toda a história que esse género acarreta, não obstante o trabalho de minar o romance que o escritor explora (também essa opção com uma longa, lenta mas contínua história), e outra o de “prosa poética” (Textos mais ou menos poéticos e, agora, Cadernos de Fausto). Estoutro termo tem também uma história própria, expoentes, cultivos vários. Nos aspectos que mais importam sublinhar em relação a este livro, importa acentuar que na História da Literatura vários momentos houve de substantivização da matéria literária, um desprendimento dos representamen (Peirce) dos restantes signos para efectuar “ligações directas” (e, sem dúvida, perigosas) entre a coisa literária e o seu sentido próprio. Exemplos? A micrografia hebraica medieval. Os exercícios visuais do Barroco. Alguns dos Himmlische Libes-Küsse de Quirinus Kuhlmann. E toda a história da literatura do século XX está mosqueada de exercícios análogos (“exercícios” não como preparação para, mas antes, etimologicamente, como impedir ao fechamento).
Impedir a um fechamento, quer dizer, impedir que se tenha uma visão ciclópica e de túnel de que para efectuar a matéria literária há um número relativamente limitado, aceitável, concursável, reportável de vias. Rafael Dionísio permite-se a um reemprego de uma linguagem de “vanguarda”, esta agora irremediavelmente historicizada, Rafael Dionísio retorna a ela com essa mesma distância histórica. Há aqui um movimento idêntico àquele verificado na poesia de Nuno Moura, de algum Álvaro Lapa, de Gonçalo M. Tavares (mas não na sua prosa), de uma objectificção das palavras, duma autonomização das palavras face às suas funções no texto, mas que não impede a construção de um sentido inteligível e interpretável, último (diferente, assim, das maiores objectificações, visuais, da Poesia Experimental Portuguesa, de Alberto Pimenta). A recuperação da atitude de vanguarda está num certo tom de desafio, mas ao mesmo tempo constitui-se como gesto de garantir o facto de que tais experiências são válidas, permissíveis e exequíveis (no próprio livro). Não há uma inventabilidade da língua, quer através de um mergulho na etimologia e irmandade das línguas (Joyce) ou na fragmentação articulada-desarticulada (Schwitters), mas uma plena objectificação dos seus elementos – a partir da qual se podem dar moleculares mergulhos e moleculares fragmentações.
Essa objectificação está ao nível da linguagem, da escrita, da matéria literária. Não há porém aqui qualquer “ingenuidade reificadora”: o que se retrata em Cadernos de Fausto não é uma personagem, matéria fictícia e factícia que bebesse de realidade viva e a moldasse de um ou outro modo, mas uma apresentação de uma ideia; irreal, mas uma ideia sua: de novo, matéria literária. Fausto não existe. Não pensamos em (um) Fausto, mas no Fausto das primeiras impressões populares, e depois no de Marlowe, no de Pessoa, de Thomas Mann, acima de todos o de Goethe, e agora no Fausto de Dionísio. Fausto metaforiza-se em absoluto, entendendo a metáfora não enquanto ornato, rodriguinho, mas “instrumento que induz o homem a evitar a realidade” (1).
A canga narrativa do Fausto não interessa nestes Cadernos, alija-se esse peso e “então não símbolos e sim voar mesmo” (pg. 66). Voo válido que vem de experiências do passado “sim” que tem a mesma força que o de Molly Bloom.
Este livro apresenta uma colecção de curtas histórias com este Fausto. É possível identificar momentos e espaços, acções continuadas e repostas, níveis de intervenção. Histórias contadas por uma voz de um narrador externo, o qual, em instâncias esparsas, revela uma intervenção argumentativa, que pode ser entendida tanto como comentário sobre a própria natureza dos Cadernos como surgir claramente como confessio do escritor, como explicação deste trabalho. “o meu templo é a vontade e a violência” (9); “porque é que ainda hoje, depois destes anos todos, porque é que ainda hoje?” (18); uma escrita a nível quântico (labirintório, pgs. 45-46, imediatamente antes de depois de bohr) que implica um movimento “locomotextual” (40). Os ritmos são vários, as direcções múltiplas: “ quem escrever de trás para a frente, o corpo desfaz-se” (77). Podem-se começar a ler estes textos pelo meio, todos eles se encontram a meio, in media res. Não há entrada como não há saída. “(começou a chover e as estrelas foram sendo apagadas com barulho de brasas na água, olhar as coisas, o que ficou semi-destruído na bancada de fausto, e fico estupefacto com as coisas, com os objectos, com os objectos que não consigo compreender, que não consigo perceber o que são, nem os reconheço, nem os restos do mundo)” (23) – tudo é a duas dimensões, as da folha, as da linguagem (linearidade e duração).
No interior dos textos existem estruturas fixas e fortes, frases ou mesmo parágrafos no interior retornando mais tarde, ou mesmo no final, como se fossem refrões, como se fizessem parte de um vilancete, ou uma vaga... Um vaivém, um retomar do fio à meada, uma retractação do autor para que possa, de novo, escrever o que não dissera ou como o não dissera. “- acreditas no que dizes?/- não.” (126). Não se tratando de um palimpsesto, todavia, pois tudo é deixado visível e legível.
Há como que um efeito cintilante, ou seja, em que o brilho do sentido não é ininterrupto e pouco ilumina, perfazendo-nos um caminho, mas pulsa antes em breves fulgurâncias que, no entanto, nos permitem adivinhar um qualquer curso, que difere entre cada leitor ou mesmo, num leitor, a cada leitura. Apenas esperamos que haja coincidência no ponto de chegada e, mesmo assim, se não o for (chegada, pois não há saída), não será trágico. Esse encerramento no espaço literário de interpretação aberta obriga-nos a refocinhar no texto, nas pilhas de caruma e limo e matéria textual que parece ter sido deixada ali a morrer e a decompor-se em húmus por uma primeira escrita, em busca das poucas trufas que podemos identificar como recuperáveis à luz de uma linguagem textual mais convencional, mas sem que os nossos focinhos não fiquem impregnados pela humidade fértil e os sugestivos aromas dessa primeira matéria. Todos os sentidos operam nesse canto florestal – citam-se florestas, uma?, várias? -, de conto a conto, não criando a ilusão de personalidade sobre Fausto, como vimos, mas como caminho esotérico. A floresta à qual retorna vezes sem conta tratar-se-á tanto daquela da “ficção” (Eco, falando dos sendeiros dos textos) como a que marca a “metade da vida” (em Dante). Sempre metades, sempre labirintos. Nos Cadernos de Fausto, um minuto cabe num infinito. Isto não é banal, é apenas uma ligeira torção da percepção, de captar no natural aquilo que o ultrapassa e transcende, o que não é o mesmo que “capturar o infinito num minuto”. Também os rizomas são citados, quer enquanto órgão vegetal quer enquanto o conceito deleuziano (citado textualmente), abrindo de novo como metades, como entradas e saídas.
Fausto é pertença do texto, preso à liminar falha entre o que separa o autor do seu objecto criado: “eu não sou o fausto” (94), “fausto é a minha sombra” (128), “fausto é uma fraude” (62), “esse martírio dentro do mal” (96), “fausto é um não-humano. uma mistura de vários aparafusados. ele é o labirinto. o minofausto, o dédalo dedilhando labirintástases, (...)” (40). Este Fausto tenta várias formas de suicídio – alguns deles conseguidos, sendo o retorno da morte não paradoxal, mas próprio da sua figura literária. “havia quem dissesse que fausto tinha perdido a razão. Pobres diabos, não era com a razão que ele trabalhava” (88).
Ele é puro atributo do texto. “talvez seja melhor agora dedicar-me mais a comunicar com fausto, pode ser que ele me ajude, mas acho que ele se está bem nas tintas” (37). Há uma clara separação de “personagens”, umas das outras, mesmo que obedeçam a um mesmo nome significativo, como elas da voz narradora. Trabalho literário (i.e., “com letras”), não “criar mundos fictícios e ficcionais”. Inscreve-se, portanto, nessa longa tradição da “desumanização da arte” que acompanha, que é mesmo parte integrante do programa da modernidade, e de que Ortega y Gasset deu conta. “Vida é uma coisa, poesia é outra”, são esferas separadas, tais como são esferas separadas as disciplinas da arte, por mais que a contemporaneidade as queira dissolver, misturar e cruzar (2).
Num ou outro momento, citam-se as diáclases, “fracturas naturais na rocha”, conforme o dicionário – revelando parte da formação académica do autor? Interessa ainda o biografismo para a leitura dos livros? Pois é isso mesmo o que Rafael Dionísio cria em Cadernos de Fausto, diáclases na rocha, brechas naturais no espaço literário, que se quedam fora do entendimento das “pessoas normais”, nos Cadernos de Fausto definidas como “divindades mórbidas em pequenas bolsas de ar presas na rocha” (102). Estas são aquelas que não se esforçam por alcançar o espaço literário por si mesmo, esperando dele apenas a fonte contumaz de entretenimento e confirmação existencial. Caem nas diáclases do espaço literário, nelas ficam presas, mas nenhum movimento apreendem nele. Farão parte dos que se defendem, como o ignorante face à obra de arte, “isto não presta”, revelando não sentir sequer a curiosidade de permitir-se a um esforço de compreensão. Não se trata de não gostar, distância valorativa a que terá direito; trata-se de não querer dar-se a si mesmo sequer essa condição de possibilidade, gesto bem mais grave. São as “estupidezes”, “prepotentes, sobranceiras” combatidas, vilipendiadas, espezinhadas e deitadas a língua de fora no capítulo contra as pessoas (91-93).
No momento em que o Fausto de Goethe está prestes a selar o pacto com Mefistófeles, desafia-o, dizendo-lhe que se alguma vez lhe disser, em relação ao “momento fugaz”, “Verweile doch! Du bist so schön!” (“Demora-te! És tão belo!”), se alguma vez se deixar adormecer nas benevolentes, indolentes e doces oferendas do diabo, que este lhe tire a vida. No fim, Fausto perde a aposta, ainda que seja alforriado pelos anjos. O Fausto de Dionísio é a sombra que perdeu a aposta e ficou encravada nesse belo e demorado momento fugaz, nessa brecha, feito só de texto.
(1) Todo este parágrafo a partir do prólogo de Maria Filomena Molder, “Equivalências e intempestivas”, ao livro de José Ortega y Gasset, [La deshumanización del arte, 1925] {trad. port. Manuela Agostinho e Teresa Salgado Canhão, A desumanização da arte. Vega: Lisboa 2003 [3ª ed.]; para citações, v. pgs. 36-37, e 33.
(2) Com Ortega y Gasset, op. cit., pg. 96.
Texto de Pedro Vieira de Moura
E se falássemos sobre Borges?
O convite parte da Fundação José Saramago, com a colaboração da Biblioteca Nacional e o apoio da Teorema. Às 18h30, no Auditório da BN, José Saramago e María Kodama falarão sobre Jorge Luís Borges. A entrada é livre.
19 junho 2008
Café Literário: Livraria 107
Mais logo, pelas 21h30, no Café Teatro do Centro Cultural e de Congressos das Caldas da Rainha, a Livraria 107 apresenta mais uma edição do seu Café Literário. Pedro Tavares de Almeida, Luis Salgado de Matos, David Justino e João Serra são os convidados para a tertúlia. No capítulo dos livros apresentados, Democracia Partidos e Elites, de Maurizio Cotta e Duplo Movimento. Ensaios de História, de Raffaele Romanelli (ambos dos Livros Horizonte), estarão em destaque.
A demência...
Dormir manhã fora e trabalhar noite dentro nunca deu saúde a ninguém. Mas também não pensei que as insónias me fizessem perder a noção dos dias da semana. Assim, fica esclarecido que o post anterior (que manterei, para não me esquecer da minha própria demência nocturna e começar a pensar em trocar os sonos) é válido para hoje, a verdadeira véspera da chegada do Ípsilon às bancas.
No Ípsilon, daqui a nada
Não há nada melhor para alguém viciado na imprensa: Isabel Coutinho continua a brindar-nos com uma pequena amostra do que poderemos ler no Ípsilon, na véspera de ele chegar às bancas. Amanhã, haverá Bomarzo, de Manuel Mujica Láinez, e uma entrevista com Thomas Berger, autor de Pequeno Grande Homem.
Manuel Alberto Valente distinguido em França
O editor Manuel Alberto Valente foi nomeado Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras pelo governo francês, tendo a Ministra da Cultura de França destacado a sua “notável contribuição para a divulgação da cultura francesa”.
Segundo um comunicado da Porto Editora, onde Manuel Alberto Valente actualmente trabalha, sendo responsável pela Divisão Editorial de Lisboa, o editor afirma-se “surpreendido, mas feliz” pela condecoração recebida. Manuel Alberto Valente faz questão de a partilhar com “todos aqueles – autores, editores, jornalistas – que, ao longo de quase trinta anos, contribuíram para o meu entusiasmo pela literatura e pela cultura francesas”, mencionando, em particular a “lição de Eduardo Prado Coelho e a memória de José Cardoso Pires, que me ‘iniciou’, bem cedo, na obra de Roger Vailland".
Segundo um comunicado da Porto Editora, onde Manuel Alberto Valente actualmente trabalha, sendo responsável pela Divisão Editorial de Lisboa, o editor afirma-se “surpreendido, mas feliz” pela condecoração recebida. Manuel Alberto Valente faz questão de a partilhar com “todos aqueles – autores, editores, jornalistas – que, ao longo de quase trinta anos, contribuíram para o meu entusiasmo pela literatura e pela cultura francesas”, mencionando, em particular a “lição de Eduardo Prado Coelho e a memória de José Cardoso Pires, que me ‘iniciou’, bem cedo, na obra de Roger Vailland".
18 junho 2008
Crónicas do Baú II
Aprendi a ler com a Teleculinária. Bem sei que me assentaria muito melhor dizer que foi com a Odisseia, mesmo que numa versão juvenil, mas a verdade é que foi a capa de uma Teleculinária que me fez descobrir que era fácil juntar letras, formando palavras. O alfabeto era já meu conhecido há algum tempo, sobretudo pela presença da minha irmã, seis anos mais velha, que por algum motivo incompreensível para mim na altura já lia há muito tempo, enquanto eu apenas conseguia dizer, cada vez mais rapidamente, a sequência completa das letras que o formavam. Faltavam poucos meses para a entrada na primeira classe e eu já não suportava aquela lengalenga do abecedário (imagino como se sentiriam as pessoas da família) e os esforços de debitar letras como se isso me abrisse as portas para todos os livros que moravam lá em casa, e que a minha irmã lia sem dificuldade. Eu queria ler e o raio das férias nunca mais chegavam ao fim e eu nunca mais ia para a escola aprender, finalmente, a decifrar as letras. Até que numa tarde em que já ninguém devia poder ouvir o ‘abcdefghij...’ e as minhas lamúrias por ainda não conseguir ler, a minha mãe agarrou no que estava mais à mão – e era uma Teleculinária – e disse-me para ler o que estava na capa. Se eu conhecia as letras, se eu tinha uma noção dos sons que representavam, se eu tinha tanta vontade de ler, então que lesse. E eu li. E como já era pudica na altura, evitei a todo o custo a terceira sílaba, porque sabia que ‘cu’ era o tipo de palavra que não fazia mal aprender, mas que não seria suposto alardear assim ao pé dos adultos. A minha mãe insistiu e quando venci, em voz alta, o pudor da terceira sílaba, já tinha percebido que tudo o que estava naquela capa era perfeitamente legível para mim. Tinha-se acabado a ladainha do ‘abcdefghij...’ e os lamentos infantis pela incapacidade leitora. O mundo estava, agora, à minha disposição.
Entre a Teleculinária e as primeiras leituras de que tenho memória devo ter lido o que havia disponível, entre livros meus e da minha irmã, com mais ou menos imagens. E quando a primeira classe chegou eu sentia-me a rainha das letras. Faltava, claro, perceber que o facto de já saber ler não beneficiava em nada com as minhas maratonas em voz alta: a professora mandava ler – o livro era o Papu, nome completamente abstruso para um manual escolar, mas ainda assim memorável – e eu erguia a voz e lia tudo o que me aparecia à frente com o máximo de velocidade que conseguia imprimir ao processo. O resultado era sempre uma enorme irritação da professora e um ar um bocado chateado dos colegas, agora submetidos a uma tortura que em nada diferia da do ‘abcdefghij...’ que a minha família tinha vivido durante algum tempo. E talvez estas leituras sonoras e sem travões tenham sido o grande motivo para a minha descoberta precoce das maravilhas da leitura solitária e silenciosa, descoberta cujos frutos permaneceram, felizmente, mesmo depois de ter percebido que ninguém queria ouvir-me ler a cem à hora, não só porque era irritante como porque algumas sílabas acabavam comidas. Passei, então, a ter sempre um livro na mala e ganhei o direito a uns minutos de leitura por minha conta antes de apagar a luz.
Pouco antes do episódio da Teleculinária, a minha mãe lia-nos todas as noites um pedaço de As Aventuras do Avião Vermelho, de Erico Verissimo. Quando a leitura se instalou sem segredos, descobri que esse era apenas um livro de uma vasta colecção, cujos números passaram a constar das ofertas natalícias e de aniversário por parte da família. A colecção era a Picapau, da editorial Verbo, e os livros que me chegaram foram sendo lidos com a mesma avidez com que queria dizer o abecedário uns meses antes, só que agora com a calma e a surpresa que permitiam o prazer de cada página. Esther de Lemos, Erico Veríssimo, Patrícia Joyce, Fernanda de Castro, Ricardo Alberti ou Adolfo Simões Müller eram alguns dos escritores, muitos deles reincidindo em vários números da colecção e deixando-me conhecer, mesmo sem saber, uma amostra significativa da literatura portuguesa e brasileira. E as ilustrações de Fernando Bento cumpriam, vejo-o hoje, o importante papel de dar a ler imagens coerentes com o texto, sem nunca lhe roubar o protagonismo e sem formatar a imaginação de quem lia. Os livros com contos curtos foram os primeiros que li, deixando os que tinham um único texto, longo, para mais tarde. Bonecos de Papel de Cor e O País dos Sorrisos, ambos de Ricardo Alberti, A Menina de Porcelana e o General de Ferro, de Esther de Lemos , O Urso Com Música na Barriga e, claro, As Aventuras do Avião Vermelho, de Erico Veríssimo, são histórias de que ainda hoje me lembro, bem como do momento em que primeiro as li. E de toda a colecção, lembro-me sobretudo de um outro livro, com uma única história, lido uns dois ou três anos mais tarde: chamava-se Os Sótãos Furados, foi escrito por Maria do Carmo de Almeida e posso dizer, sem hesitações e sem medo de que não fique bem não dizer isto de um livro mais erudito (também, depois da Teleculinária, já ninguém esperaria), que é um dos livros da minha vida. Sim, há a Odisseia, claro, e Os Irmãos Karamazov, e parte considerável dos autores do cânone, uns de melhor memória que outros, mas o primeiro livro que realmente li com a consciência de tudo estar a mudar no modo como eu via o mundo foi Os Sótãos Furados. E isso merece, claro está, um outro texto, tão brevemente como as noites de insónia o permitam.
Perdoada do pedantismo pela turma, lá percebi que ler como quem relata a bola era uma coisa muito estúpida, mas a preferência pela leitura silenciosa ficou, mantendo-se o horror de ler em voz alta até hoje. Pelo caminho, ainda converti um ou dois colegas à colecção Picapau, e espero que guardem dela uma memória mais forte do que das minhas leituras aceleradas.
Entre a Teleculinária e as primeiras leituras de que tenho memória devo ter lido o que havia disponível, entre livros meus e da minha irmã, com mais ou menos imagens. E quando a primeira classe chegou eu sentia-me a rainha das letras. Faltava, claro, perceber que o facto de já saber ler não beneficiava em nada com as minhas maratonas em voz alta: a professora mandava ler – o livro era o Papu, nome completamente abstruso para um manual escolar, mas ainda assim memorável – e eu erguia a voz e lia tudo o que me aparecia à frente com o máximo de velocidade que conseguia imprimir ao processo. O resultado era sempre uma enorme irritação da professora e um ar um bocado chateado dos colegas, agora submetidos a uma tortura que em nada diferia da do ‘abcdefghij...’ que a minha família tinha vivido durante algum tempo. E talvez estas leituras sonoras e sem travões tenham sido o grande motivo para a minha descoberta precoce das maravilhas da leitura solitária e silenciosa, descoberta cujos frutos permaneceram, felizmente, mesmo depois de ter percebido que ninguém queria ouvir-me ler a cem à hora, não só porque era irritante como porque algumas sílabas acabavam comidas. Passei, então, a ter sempre um livro na mala e ganhei o direito a uns minutos de leitura por minha conta antes de apagar a luz.
Pouco antes do episódio da Teleculinária, a minha mãe lia-nos todas as noites um pedaço de As Aventuras do Avião Vermelho, de Erico Verissimo. Quando a leitura se instalou sem segredos, descobri que esse era apenas um livro de uma vasta colecção, cujos números passaram a constar das ofertas natalícias e de aniversário por parte da família. A colecção era a Picapau, da editorial Verbo, e os livros que me chegaram foram sendo lidos com a mesma avidez com que queria dizer o abecedário uns meses antes, só que agora com a calma e a surpresa que permitiam o prazer de cada página. Esther de Lemos, Erico Veríssimo, Patrícia Joyce, Fernanda de Castro, Ricardo Alberti ou Adolfo Simões Müller eram alguns dos escritores, muitos deles reincidindo em vários números da colecção e deixando-me conhecer, mesmo sem saber, uma amostra significativa da literatura portuguesa e brasileira. E as ilustrações de Fernando Bento cumpriam, vejo-o hoje, o importante papel de dar a ler imagens coerentes com o texto, sem nunca lhe roubar o protagonismo e sem formatar a imaginação de quem lia. Os livros com contos curtos foram os primeiros que li, deixando os que tinham um único texto, longo, para mais tarde. Bonecos de Papel de Cor e O País dos Sorrisos, ambos de Ricardo Alberti, A Menina de Porcelana e o General de Ferro, de Esther de Lemos , O Urso Com Música na Barriga e, claro, As Aventuras do Avião Vermelho, de Erico Veríssimo, são histórias de que ainda hoje me lembro, bem como do momento em que primeiro as li. E de toda a colecção, lembro-me sobretudo de um outro livro, com uma única história, lido uns dois ou três anos mais tarde: chamava-se Os Sótãos Furados, foi escrito por Maria do Carmo de Almeida e posso dizer, sem hesitações e sem medo de que não fique bem não dizer isto de um livro mais erudito (também, depois da Teleculinária, já ninguém esperaria), que é um dos livros da minha vida. Sim, há a Odisseia, claro, e Os Irmãos Karamazov, e parte considerável dos autores do cânone, uns de melhor memória que outros, mas o primeiro livro que realmente li com a consciência de tudo estar a mudar no modo como eu via o mundo foi Os Sótãos Furados. E isso merece, claro está, um outro texto, tão brevemente como as noites de insónia o permitam.
Perdoada do pedantismo pela turma, lá percebi que ler como quem relata a bola era uma coisa muito estúpida, mas a preferência pela leitura silenciosa ficou, mantendo-se o horror de ler em voz alta até hoje. Pelo caminho, ainda converti um ou dois colegas à colecção Picapau, e espero que guardem dela uma memória mais forte do que das minhas leituras aceleradas.
Está explicado
No passado sábado, em deambulações nocturnas pela Baixa lisboeta, dei com a Sá da Costa aberta às dez e meia da noite. Lá dentro, pilhas de livros da editora homónima vendiam-se a preço de amigo e um cartaz anunciava o encerramento da livraria para remodelações. Oscilei entre o temor de ver a livraria transformada num café ou num franchising de comida de plástico a curto prazo e a esperança de a ver reabrir com cara lavada e melhoramentos que há muito se impunham, mas mantendo o perfil de livraria a sério que ainda tem. Agora descubro a explicação e mantenho a esperança na segunda hipótese.
17 junho 2008
16 junho 2008
Ondjaki
Foi este que ganhou o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco 2007:
Mas é este que está na pilha das próximas leituras, numa lista de espera ainda considerável, ainda que com a sua vez a aproximar-se a passos largos:
Mas é este que está na pilha das próximas leituras, numa lista de espera ainda considerável, ainda que com a sua vez a aproximar-se a passos largos:
Sem meias palavras
Na edição de ontem do New York Times, Deborah Solomon assume a difícil tarefa de entrevistar Gore Vidal, que publica esta semana um novo volume de ensaios.
Livrarias: um roteiro
O Independent recomenda cinquenta livrarias no Reino Unido e a gente fica com vontade de fazer as malas e ir de férias. Para ler aqui.
15 junho 2008
Padre António Vieira
Na terça-feira, dia 17, entre as 18 e as 20 horas, a Livraria Almedina do Saldanha recebe um encontro em torno da vida e da obra do Padre António Vieira, com a participação de Miguel Real, José Eduardo Franco, Manuel J. Gandra e Paulo Borges.
(o rabisco, está bem à vista, é do Pedro Vieira)
(o rabisco, está bem à vista, é do Pedro Vieira)
Feira do Livro de Lisboa
Abre daqui a nada, às 15 horas, e às 23 horas encerra de vez. Dizem que para o ano nada será como antes e que este foi o último ano em que vimos as tradicionais barraquinhas coloridas no Parque Eduardo VII.
13 junho 2008
120 anos
Ilustração de Pedro Vieira, aka, Irmão Lúcia (concebida para a montra da Livraria Almedina do Saldanha)
" Que de Infernos e Purgatórios e Paraísos tenho em mim - e quem me conhece um gesto discordando da vida... a mim tão calmo e plácido?
Eu não escrevo em português. Escrevo eu mesmo."
Do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares.
Frag. 443, edição de Richard Zenith para a Assírio & Alvim, p.378
12 junho 2008
Fundação José Saramago
O blog da Fundação José Saramago acaba de estrear-se aqui. A primeira entrada anuncia o debate entre José Saramago e María Kodama sobre Jorge Luís Borges, marcado para o próximo dia 20, na Biblioteca Nacional (pelas 18h30). Daqui para a frente, a Fundação José Saramago irá dando conta das suas actividades e das notícias relativas ao escritor neste novo espaço, a entrar directamente para a barra dos links.
Pecadilhos IV (e ainda por cima, a dobrar)
Bem sei que não ligar nenhuma à selecção nacional (e isto apesar do muito que gosto de ver futebol) não me traz muitas amizades em alturas de euforia patrioteiro-futebolística como esta, e que persistir na leitura atenta e veneradora dos textos de João Pereira Coutinho só serve para intrigar as amizades que já tenho, sobretudo desde que deixei de persistir em tais leituras às escondidas, mas façam-me um favor e leiam o que o homem escreveu a propósito de Cristiano Ronaldo, e depois vejam lá se ainda conseguem pensar que nos jornais não se escreve bem e com estilo.
Nota: É bom sinal que se façam segundas edições, revistas e aumentadas, dos livros... Mas, e quem comprou a primeira e agora sabe que há extras na segunda, não se sente um bocadinho enganado?
Mesmo assim, sentindo-me um bocadinho enganada, não posso deixar de aconselhar uma passagem pelo pavilhão das Quasi nas Feiras do Livro. Este volume já por lá deve andar e os euros são mais do que justificados.
Nota: É bom sinal que se façam segundas edições, revistas e aumentadas, dos livros... Mas, e quem comprou a primeira e agora sabe que há extras na segunda, não se sente um bocadinho enganado?
Mesmo assim, sentindo-me um bocadinho enganada, não posso deixar de aconselhar uma passagem pelo pavilhão das Quasi nas Feiras do Livro. Este volume já por lá deve andar e os euros são mais do que justificados.
A Grande Obra
A morte de alguns dos maiores filósofos da humanidade, de Heráclito a Foucault, pode bem ter sido a sua obra mais grandiosa, ou pelo menos é essa a ideia de The Book of Dead Philosophers, de Simon Critchley, de que o Guardian fala aqui.
11 junho 2008
À conversa com os livreiros
O resultado das conversas do ilustrador Leanne Shapton com os livreiros de algumas das suas livrarias favoritas podem ser vistos/lidos no New York Times (o link não é directo, mas basta procurarem a imagem e o título "Shop Talk" na primeira página).
09 junho 2008
Sublinhados XVI
"Este é um problema dos tempos que correm. O grande ódio contra os alemães, que me envenena a alma. 'Eles que se afoguem, essa ralé, deveriam ser todos fumigados.' Estas observações fazem parte da conversa do dia-a-dia e às vezes provocam-nos a sensação de que é impossível viver nesta época. Até que de repente, há umas semanas, me surgiu a ideia libertadora, hesitante e frágil como um rebento de relva que começa a nascer num terreno bravio rodeado de ervas daninhas: mesmo que só houvesse um alemão digno de ser protegido contra essa chusma bárbara, por causa desse alemão decente não se devia derramar o ódio sobre um povo inteiro.
Isso não significa que uma pessoa deva ter uma atitude indecisa em relação a determinadas correntes, uma pessoa toma posição, indigna-se regularmente com determinadas coisas, tenta informar-se, mas o ódio indiferenciado é a pior coisa que existe."
Etty Hillesum, Diário 1941-1943 (Assírio & Alvim, trad. de Maria LEonor Raven-Gomes, p.69)
Isso não significa que uma pessoa deva ter uma atitude indecisa em relação a determinadas correntes, uma pessoa toma posição, indigna-se regularmente com determinadas coisas, tenta informar-se, mas o ódio indiferenciado é a pior coisa que existe."
Etty Hillesum, Diário 1941-1943 (Assírio & Alvim, trad. de Maria LEonor Raven-Gomes, p.69)
08 junho 2008
Livros ao peito
Na Feira do Livro de Lisboa, no stand da Assírio & Alvim, há pins com imagens dos autores e dos livros do catálogo da editora.
Pullman e a idade dos leitores
06 junho 2008
Já lá cantam!
Negócio fechado: como noticiam os Blogtailors, a aquisição das editoras Oficina do Livro, Estrela Polar, Sebenta e Teorema pela Leya já está concluída. Veremos se a coisa pára por aqui.
Sugestão, a propósito: quem quiser comprar os livros mais antigos do catálogo da Teorema a preços mais convidativos, é aproveitar a Feira deste ano. Para o ano, se o modelo da Praça Leya se repetir, talvez já lá não estejam...
Sugestão, a propósito: quem quiser comprar os livros mais antigos do catálogo da Teorema a preços mais convidativos, é aproveitar a Feira deste ano. Para o ano, se o modelo da Praça Leya se repetir, talvez já lá não estejam...
Vários tipos de 'clássicos'
Sem querer entrar na discussão sobre o que é um 'clássico' a esta hora da manhã, deixo as aspas para todas as ressalvas e apresento algumas sugestões de livros do dia de hoje, na Feira do Livro de Lisboa.
Na Cavalo de Ferro, o Orlando Furioso, de Ludovico Ariosto, estará à venda a 32 euros. O investimento é grande, mas o desconto é assinalável. Na Biblioteca Independente, o livro do dia é de Suetónio, Os Doze Césares. Na Quasi, A Minha Mulher, de Anton Tchekov. Na Antígona, A Filosofia na Alcova, do Marquês de Sade. Na Tinta da China, A História de um Rapaz Mau, de Thomas Bailey Aldrich. E na Assírio & Alvim, os Poemas, de Almada Negreiros.
Na Cavalo de Ferro, o Orlando Furioso, de Ludovico Ariosto, estará à venda a 32 euros. O investimento é grande, mas o desconto é assinalável. Na Biblioteca Independente, o livro do dia é de Suetónio, Os Doze Césares. Na Quasi, A Minha Mulher, de Anton Tchekov. Na Antígona, A Filosofia na Alcova, do Marquês de Sade. Na Tinta da China, A História de um Rapaz Mau, de Thomas Bailey Aldrich. E na Assírio & Alvim, os Poemas, de Almada Negreiros.
Do silêncio, esse bem tão precioso
O Cadeirão ganhou a companhia de um sofá novo, e entre os inevitáveis parafusos, acabou por não haver tempo para as actualizações de ontem. Agora era só conseguir que os vizinhos do 5ºandar se solidarizassem com a dificuldade de ler ao som estridente da Rita Lee e de um cd manhoso compilando música clássica e o 'Barcelona', cantado pelo Freddie Mercury e a Montserrat Caballé...
04 junho 2008
Ana Luísa Amaral
Com o livro Entre Dois Rios e Outras Noites (Campo das Letras), Ana Luísa Amaral venceu o Grande Prémio de Poesia da APE.
Maiores de...
Em Inglaterra, o mundo editorial vive em agitação desde a semana passada. Os editores preparam-se para colocar nas capas dos livros destinados ao público infantil a informação sobre a faixa etária para a qual cada livro se recomenda (hábito esporádico na edição portuguesa) e vários autores acreditam que isso será uma medida contraproducente (os argumentos podem conhecr-se aqui). O debate está lançado na imprensa e em algumas publicações da especialidade, como a Boookseller, e promete ter continuação nos próximos dias, nomeadamente com a contribuição de Philip Pullman.
03 junho 2008
Sublinhados XV
"Nascemos para o que nos rodeia vezes sem conta. Em cada renascimento há um estendal de coisas novas à nossa disposição que produzem a nossa vida. E outras coisas tomam inédita postura ou fingem escondimento e sorvem da nossa vida. São os nomes que nos ligam às coisas. E toda a vida aprofundamos, ampliamos, compreendemos, explicamos essa estranha e familiar ligação, nunca concluída, com o nome que envolve cada coisa, 'o espantoso nome que damos às coisas'. E com o tempo percebemos que a literatura é um habilidoso e multifacetado artefacto que toma os nomes e, a partir deles, conduz ao mais íntimo coração das respectivas coisas."
Manuel Hermínio Monteiro, "Uma Rara Magia", in Ler, nº13, Inverno 1991
Manuel Hermínio Monteiro, "Uma Rara Magia", in Ler, nº13, Inverno 1991
02 junho 2008
Prémios de Edição
Os Prémios de Edição Booktailors/Ler foram anunciados na passada quinta-feira, na Casa Fernando Pessoa, e já têm regulamento disponível. Para ver aqui.
Agora sim, a nova Ler
Hoje de manhã, lá estava ela, guardada pela Dona Teresa. Mas como o dia foi de trabalhos, as leituras têm de ficar para amanhã.
Paperback Dreams
Apresentado há dois dias na Book Expo America, o documentário televisivo Paperback Dreams debruça-se sobre o universo das livrarias independentes e os problemas com que estas têm de lidar para se manterem. Os protagonistas são Andy Ross, dono da Cody’s Books (em Berkeley), e Clark Kepler, dono da Kepler’s Books (na Califórnia, mas actualmente encerrada), e o documentário acompanha-os ao longo de dois anos, cruzando entrevistas com várias pessoas ligadas aos livros e a outras áreas culturais.
No site do filme podem conhecer-se outros pormenores, bem como assistir a um pequeno trailer de apresentação (já no site da RTP podem enviar-se e-mails, solicitando a transmissão do documentário na televisão portuguesa... não custa tentar).
No site do filme podem conhecer-se outros pormenores, bem como assistir a um pequeno trailer de apresentação (já no site da RTP podem enviar-se e-mails, solicitando a transmissão do documentário na televisão portuguesa... não custa tentar).
01 junho 2008
Ler
Estaria nas bancas ontem, mas nenhuma papelaria ou livraria de Campo de Ourique a tinha. Hoje, idem. Já lhe conheço o índice, excertos de alguns artigos e a capa, mas a revista propriamente dita, nem vê-la. A distribuidora não gosta do bairro de Pessoa, ou o problema é geral?
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