03 julho 2008

Rodrigo Fresan, Jardins de Kensington, Cavalo de Ferro




       O início deste livro soa a dupla blasfémia: anuncia-se, sem tempo para mistérios, uma morte, e logo depois revela-se que a morte é um suicídio e que o suicida é Peter Pan. Perante este início, nem a certeza de um inevitável registo humorístico nem a probabilidade de um lamento fúnebre pelo fim da infância se cumprem, erguendo-se, antes, uma narrativa densa e bem articulada onde se cruzam duas épocas e uma só história.
       A narração, que ocupa as mais de quatrocentas páginas do romance, decorre numa única noite, mas à mestria de Peter Hook, o narrador que é também um conhecido autor de livros infantis, basta esse curto período para relatar os factos que seleccionou da vida de J.M.Barrie, escritor que assinou Peter Pan, e da sua própria vida. Entre a Inglaterra vitoriana de Barrie e a Londres afogada em ácidos dos anos sessenta, em que os seus pais acabaram por perder-se, Hook situa a sua história num plano intemporal, saltando em direcção aos muitos passados enquanto tenta decidir o que fazer com o seu presente. Tal como Barrie, Hook guarda a memória viva de uma infância traumática, marcada, no seu caso, pela morte do irmão mais novo, seguido pelos pais. E refém dessa ligação, intensificada pelo suicídio do homem que inspirou a personagem de Peter Pan no mesmo dia em que Hook nasceu, o narrador alimentará uma divagação cruel pelo passado de ambos, o seu e o de Barrie, procurando respostas que, tal como a Terra do Nunca, já não estão ao seu alcance.
       É a essência do Peter Pan original, e não os sucedâneos coloridos da Disney – que o narrador tão duramente caricatura – que alimenta os muitos enredos deste romance: a capacidade de imaginar sem entraves, mas também um certo negrume e uma noção muito clara do medo e da morte, elementos que teimam em ser afastados do modo como os adultos entendem as crianças (sobretudo os adultos que escrevem para crianças). No fim, uma só certeza: depois de Kensington, não voltaremos a olhar para os autores de bestsellers infantis do mesmo modo.

Sara Figueiredo Costa

(Texto publicado na revista Time Out, nº39, 25Jun-01 Jul 08)

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