02 julho 2008

Pré-Publicação: O Heresiarca e C.ª, Guillaume Apollinaire (Assírio & Alvim)




     A INFALIBILIDADE

     No dia 25 de Junho de 1906, o cardeal Porporelli acabava de jantar quando lhe anunciaram a visita de um padre francês, o clérigo Delhonneau. Eram três da tarde. O implacável sol que exaltou a finura triunfalista dos Romanos antigos, e agora tem dificuldade em aquecer a velhacaria gelada dos modernos, deixava cair insuportáveis raios na praça de Espanha, que é onde se ergue o palácio cardinalício, embora respeitasse o apartamento de sua eminência (1). Persianas mantinham-no com frescura agradável e meia-luz quase voluptuosa.
     O clérigo Delhonneau foi introduzido na sala de jantar. Era um padre do Morvan. O seu aspecto carrancudo não deixava de mostrar uma qualquer analogia com o dos Peles Vermelhas.
     Natural de Autun, é provável que tivesse nascido nos baluartes célticos da antiga Bibracte, no monte Beuvray. Em Autun, cidade de origem galo-romana, e nos seus arredores, ainda há gauleses com veias onde não corre sangue latino, e o clérigo Delhonneau estava entre esse número. Aproximou-se do príncipe da Igreja, e de acordo com o uso beijou-lhe o anel. Depois de recusar os frutos da Sicília que o cardeal Porporelli lhe oferecia numa cesta, expôs o objectivo da sua diligência.
     — Desejo — disse ele — ter uma entrevista com o nosso Santo Padre o papa, mas em audiência privada.
     — Missão secreta do governo? — perguntou-lhe o cardeal, com uma piscadela de olho.
     — Nada disso, eminência! — respondeu o clérigo Delhonneau. — As razões que me fazem solicitar esta audiência não só interessam à Igreja da França como a todo o mundo católico.
     — Dio mio! — exclamou o cardeal enquanto mordia uma passa de figo recheada com avelã e erva-doce. — É assim tão importante?
      — Muito importante, eminência — repetiu o padre francês, que ao mesmo tempo reparava nalgumas nódoas de estearina da sotaina e esforçava-se, esfregando-as, por as tirar.
     O prelado gemeu:
     — Mas o que pode ainda acontecer? Já temos aborrecimentos que bastam com a vossa lei sobre a separação (2) e com as divagações desse tal cónego Bierbaum de Landshut, na Baviera, que não pára de escrever sobre a Infalibilidade...
      — Que imprudente! — interrompeu o clérigo Delhonneau.
      O cardeal Porporelli mordeu os lábios. Na sua juventude, quando não passava de um padre mundano de Florença, tinha combatido a Infalibilidade mas depois vergara-se perante o dogma.
     — Terá audiência amanhã, signor clérigo — disse ele. — Conhece o cerimonial?
     Estendeu a mão; o padre inclinou-se, depôs nela um beijo sonoro e às arrecuas foi até à porta, onde fez uma segunda vénia enquanto o cardeal, mostrando um ar fatigado, com a mão direita lhe dava a bênção e com esquerda apalpava os pêssegos da cesta.

(...)

(1) As edições francesas dão a ler monseigneur (monsenhor) em todas as referências feitas ao cardeal. No entanto, numa carta que Apollinaire escreveu a Madeleine (1915/8/23) lamenta as gralhas e os erros existentes neste seu livro, e esclarece: Em «A Infalibilidade», sempre que o padre francês se dirige ao cardeal, em vez de «monsenhor» deve dizer «eminência». Façamos-lhe, portanto, a vontade. (N. do T.)

(2) Dois anos antes de Apollinaire ter escrito este conto (1907), a Terceira República da França tinha decretado a separação entre a Igreja e o Estado. (N. do T.)


Guillaume Apollinaire
O Heresiarca e C.ª
(tradução de Aníbal Fernandes)
Assírio & Alvim (disponível a partir do próximo dia 10 de Julho)

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