Quando vivia em Santiago de Compostela era cliente habitual de um alfarrabista de nome ‘Follas Vellas’, cuja caixa registadora recebeu com agrado uma parte considerável do dinheiro que fui ganhando com as explicações de português. O nome é simultaneamente um trocadilho com o título Follas Novas, de Rosália de Castro, e com a livraria homónima do livro da poeta galega, ali a dois ou três quarteirões. Com duas salas forradas a estantes até ao tecto e algumas bancadas no centro, a Follas Vellas é um manancial de livros em galego e castelhano onde, para alem dos clássicos, podem encontrar-se algumas pérolas bibliófilas (como a Galeuzca, para o qual o pecúlio das explicações não chegou), periódicos de toda a espécie e vinis que não lembram a ninguém. Por lá me abasteci de livros de Castelao, Pondal, Curros Henriquez ou Rosalía, bem como de alguns livros essenciais da literatura espanhola, sempre em troca de poucas pesetas (ainda as havia) e com a certeza crescente de que o juízo final havia de ser duro (o juízo final chegou realmente no dia em que tive de voltar para Lisboa, mas a boa vontade materna evitou que fosse apocalíptico, ao ir recolher o rebento e os seus vários caixotes de livros de carro... Ainda hoje penso no balúrdio que teria gasto em encomendas dos correios se tivesse escolhido um destino mais longínquo e menos acessível por auto-estrada para viver e estudar).
O dono das Follas Vellas era um sujeito intrigante, de cabelo e barbas brancas, óculos fundo de garrafa e sempre de poucas falas. Nas muitas tardes que passei em volta daquelas estantes, nunca ouvi uma conversa mais afectuosa com algum cliente habitual e convenci-me de que o homem seria antipático ou, em alternativa, pouco dado a felicidades por ver partir os seus livros (coisa que eu compreendia muito bem). Mas no último dia em que lá fiz compras vi-lhe um sorriso quase simpático enquanto fazia a minha conta, sorriso esse que surgiu acompanhado de um desconto generoso. Agradeci, intrigada e algo temerosa, e já em casa conferi os livros que tinha comprado em busca de uma explicação. Não sei se foi este o motivo, mas todos os livros que comprei nesse dia estavam escritos em galego, e todos eram de autores conotados com o galeguismo mais militante. Pode ter sido coincidência, mas ainda hoje gosto de contar com o alfarrabista de barbas brancas por entre a minha galeria de personagens brumosas e heróicas, bradando por uma causa que todos crêem perdida com as mãos cheias de livros.
10 dezembro 2007
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