O Livro do Pedro, Manuela Bacelar, Afrontamento (2008)
Os livros ilustrados e com histórias pensadas para os mais novos tendem a ser seleccionados por quem os compra a partir dos temas que abordam. Mais do que a qualidade da escrita e da ilustração, os adultos criteriosos na escolha de livros para crianças costumam privilegiar a temática, muitas vezes em função da idade, dos interesses ou da fase de desenvolvimento das crianças. E pode dizer-se que nos últimos anos, a oferta no mercado português evoluiu de modo a satisfazer ambas as preocupações – a estética, chamemos-lhe assim, e a pedagógica. Claro que valerá a pena reflectir sobre se as duas coisas não se misturam, sobre a importância suprema de dar a ler livros bem escritos e bem ilustrados e sobre o facto de ser possível que isso seja tão ou mais importante no desenvolvimento da criança do que a pedagogia transmitida nos livros (isto se essa mesma pedagogia for transmitida em casa).
Saltando essa parte da discussão, que daria um debate interessante e importante, fica a certeza de que os livros infantis editados entre nós têm melhorado a todos os níveis, facto que muito se deve ao aparecimento de editoras com preocupações que vão muito além da ideia simplista de que para fazer livros para miúdos basta arranjar uma história que pareça infantil aos adultos e que seja acompanhada de bonecos coloridos e apelativos: editoras como a Kalandraka, a OQO, Planeta Tangerina, Edições Heterogémeas, Gatafunho ou as Edições Kual, catálogos infanto-juvenis como os da Caminho, da Afrontamento e da Livros Horizonte (e isto apenas para citar alguns), têm feito muito pela elevação dos padrões estético-literários e das abordagens nos livros para os mais novos.
Voltando às temáticas, o tal factor decisivo na escolha dos livros, o panorama mudou muito. As prateleiras das secções infanto-juvenis das livrarias, ainda que muitas vezes se encham de ‘tralha visual florescente e cor-de-rosa sonora’ (não me lembro de melhor epíteto), oferecem já escolhas muito interessantes e diversas para as bibliotecas dos mais novos e para as ofertas sazonais de familiares e amigos das crianças. E oferecem, sobretudo, livros que, abordando temas que surgem como fundamentais para desenvolver nos leitores questões como a responsabilidade, o respeito pelo outro ou a aprendizagem do mundo, o fazem de um modo inteligente, sem moralismos ou didactismos forçados.
É o caso do livro que me faz escrever estas linhas. Chama-se O Livro do Pedro, é da autoria de Manuela Bacelar e tem a chancela da Afrontamento. A atenção que recebeu dos media , pouco dados a destaques tão unânimes quando se trata de livros infanto-juvenis, explica-se sobretudo pela temática do livro – com tudo o que isso tem de injusto para com a longa obra de Manuela Bacelar. Apesar disso, antes assim. Não é todos os dias que uma história com óbvias preocupações de transmitir ideias tão nobres no que ao desenvolvimento das crianças diz respeito consegue tomar forma e imprimir-se em livro sem que a gente a leia e pense que mais valia ter dado à criança um sermão sobre a igualdade e o respeito, em vez de impingir-lhe um livro para que ela os aprendesse. E é ainda menos frequente que essa história inclua como personagens uma família composta por uma menina com dois pais (assim mesmo, no masculino), que virá a transformar-se na mãe de dois filhos (um ainda a caminho), com o seu companheiro (ou marido, pouco importa). A sinopse poderia levar a crer que o livro que a imprensa apresentou como "o primeiro conto infantil português a abordar a temática gay" é apenas um livro que tenta enfiar na cabeça dos jovens leitores a importância da igualdade, ou apenas um livro cuja originalidade se deve à quase ausência de livros com personagens homossexuais no mercado editorial infanto-juvenil, ou apenas um livro panfletário, destinado a fazer a felicidade de quem defende a igualdade de todos os cidadãos e a criar arrepios de indignação nos meios mais conservadores. Puro engano. O Livro do Pedro é uma história simples, retratando situações do dia a dia de uma criança, envolvendo o contexto familiar – onde se destaca a partilha de momentos, os espaços para as brincadeiras, as obrigações apropriadas à responsabilidade da idade – e retratando o mundo de duas crianças de sete anos, mãe e filha, em momentos diferentes das suas vidas. Que uma das crianças tenha como pais dois homens só é novidade ou notícia porque vivemos no país em que vivemos (e também por isso se saúda o livro pela sua temática; de outro modo, seria um elemento tão importante como qualquer outro, e talvez lá cheguemos um dia...). Que esse pormenor da história seja abordado sem moralismos ou didactismos e incluído na narrativa como mais um dos seus elementos, isso é o que faz de O Livro do Pedro um livro tão recomendável. Porque não há nada pior do que criar um grande mito à volta de uma questão que só é complicada para os adultos (e para os que nos governam em particular). E sobre questões didáctico-pedagógicas estamos conversados, até porque há outras características do livro a merecerem atenção, como o facto de a história estar bem escrita e incluir, de modo acessível aos mais novos, elementos narrativos como a analepse (introduzindo a mudança de plano temporal nos hábitos de leitura), diferenças visíveis e significantes ao nível das ilustrações (relacionando-as com os diferentes planos temporais: a cada plano correspondem características pictóricas bem diferenciadas) e uma organização ao nível da paginação irrepreensível, facto tanto mais importante quanto sabemos que muitos livros infantis são feitos sem esse cuidado, resultando em amálgamas de papel, texto e desenhos sem nenhum critério organizacional que as faça parecer um livro.
Ver: Blogue de O Livro do Pedro e entrevista da autora a Fernanda Câncio, no DN.
24 março 2008
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