20 abril 2008

Da retórica: a disposição de «Dies irae»

Quando tentamos chegar ao âmago da arte de Mário de Carvalho, no conto «Dies irae» (A inaudita guerra da Avenida Gago Coutinho, Caminho,1984), sentimos que o efeito de irrealidade surpreende pela sua aceitação. As personagens da narrativa vão reagindo com alguma normalidade a acontecimentos estranhos e surpreendentes. O falcão que está no quarto do protagonista, ou o grupo de pessoas do bairro que dispara sobre o avião que sobrevoa um bairro lisboeta, são acontecimentos descontextualizados no espaço e na razão de ser. O absurdo é assim provocado pela ausência dos nexos causais necessários para validarem tais situações.
Mas o processo de captação de atenção do leitor passa pela gradação do insólito, que começa de forma ambígua, pela aparição de um animal (aparentemente um réptil) na casa de banho de Teles. A sequência cresce em intensidade com o aparecimento do falcão. Em seguida, as atitudes e discursos das pessoas amplificam a estranheza daquilo que seria um dia normal na rotina repetitiva de um empregado de escritório. A conversa do colega sobre o jogador de futebol que só tem uma perna, a oscilação da entrada de luz natural no restaurante, ou a inútil tarefa que o patrão entrega a Teles na jornada vespertina sustentam uma ideia social de alienação, que atinge o seu clímax quando o colega do protagonista abre a porta de casa e se depara com o céu, optando por ir jantar ao uma cervejaria, em consequência disto. A partir daqui, o desenlace já não espanta o leitor, agora que tudo parece possível: uma sala triangular e uma nova vista da janela.
A disposição interna deste texto actua em coerência com a sua intenção crítica, e por isso apresenta-se tripartida (no que tradicionalmente se designaria por princípio, meio e fim), sem momentos de oposição ou contraste. A ordenação das partes obedece a uma gradação de intensidade que serve o estranhamento como principal relação entre o texto e o leitor. A ordem retórica é seguida para destacar um sentido temático fora da ordem causal suposta ou reconhecível. Neste paradoxo estético reside uma das forças do texto, e na acumulação de situações o seu ritmo. Há que salientar o título, que justifica o estranhamento, devolvendo-o a um universo ficcional lógico. Mas será efectivamente assim? Ou a recuperação do título, no final do conto, terá como efeito transformar a sua totalidade linear numa totalidade circular, conferindo ao pensamento orientador do texto, à sua intenção, uma posição mais clara? A crítica da passividade, da mesquinhez, mediocridade e indiferenciação dos indivíduos torna-se mais veemente pelo percurso original que o leitor tem de seguir. O tema, por si só, não bastaria para dimensionar o conto como objecto literário. Já a sua construção, não deixa dúvidas.

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