27 março 2008

A terceira mão

Há meses que esperava com ansiedade pelo novo livro de poesia de Manuel Gusmão. Finalmente, no passado fim de semana pude lê-lo pela primeira vez: A terceira mão, Caminho. Um livro de outra dimensão.
Há uns anos, tive uma acesa conversa com uma amiga por causa da justiça ou injustiça da atribuição do Prémio Nobel a Saramago. Leitora feroz do autor, para ela não havia dúvidas. Resvalámos para os critérios de qualidade, e ela confrontou-me com o argumento recorrente da subjectividade da análise literária. E, de facto, embora não se trate de uma mera opinião subjectiva, a análise literária não está imune a uma certa relatividade inerente ao gosto, ao conhecimento prévio, e à própria biografia teórica e literária do leitor.
Depois, há um nível consensual de literatura (que é igualmente estudado, analisado, posto em causa, relacionado dentro da teoria e dos estudos literários). Esse é um nível de autoridade superiora, ao qual a palavra qualidade nem sequer chega a ser adequada. O léxico deve obrigar-se ao respeito pelo nascimento de uma língua que habita o acto de escrita e retorna, a cada livro, numa nova morada. Nesse universo, e só assim, se traçam comparações entre obras, e se concedem juízos críticos.
Quando li as Migrações do fogo, senti-me arrebatada, superada e deslumbrada. A partir de então, tenho anseado por um novo livro. Estava preparada para a cadeia de referências explícitas mas ilegíveis, e para a ordem interna minuciosamente trabalhada, ao ponto de só existir um corpo, impossível de dissecar. A fruição da primeira leitura foi por isso sem razão, apenas cadência e degustação de compostos. Na segunda, em curso, começo a ter prazer com algumas conquistas de sentido, e não queria ter de parar por aqui. O que me liberta para tal experiência é a possibilidade de assumir com entusiasmo o paradoxo: o livro é tão bom! mas não percebo nada!
A lucidez obreira perpassa o texto mas o seu efeito em mim é uma espécie de diálogo sem mediação. Uma experiência primordial, originária.

Há, para os cépticos, um livro de homenagem a Manuel Gusmão - Poesia e arte. A arte da poesia. Homenagem a Manuel Gusmão, Caminho - que explica, pela pena da autoridade académica, a valiosa mestria destas letras. Como tão poucas...

1 comentário:

Pedro Penilo disse...

Tudo o que aqui escreve me parece muito certo. Viva o Manuel Gusmão! Viva a Terceira Mão!