02 novembro 2008

Leituras II

O hábito de guardar recortes de jornal, e jornais inteiros, por vezes, revela-se muito prejudicial ao espaço que nos rodeia. A ilusão de que vamos disciplinar-nos e recolher com regularidade os artigos que queremos guardar, despachando o resto para a reciclagem, é sempre derrotada pela falta de tempo e de paciência. Mas o reencontro com artigos que quisémos preservar para memória futura é quase sempre compensador. E de certeza que a crónica de Alexandra Lucas Coelho no Ípsilon desda sexta-feira será um reencontro feliz daqui a muito ou pouco tempo, por entre os destroços de imprensa que ocupam o caixote mesmo ao lado deste cadeirão. Pelo sim, pelo não, guardei a versão digital, que aqui partilho como uma espécie de dádiva (para mim foi isso mesmo, uma dádiva).

Viagens com bolso

Alexandra Lucas Coelho


O inglês E. M. Forster chegou a Alexandria durante a I Guerra Mundial. Como era objector de consciência, foi trabalhar com a Cruz Vermelha nos hospitais. Podemos imaginar o que viu.
Durante essa estadia, Forster teve dois encontros decisivos: com o poeta Konstandinos Kavafis, de quem se tornou firme admirador, e com o jovem condutor de eléctricos Mohammed el-Adl, por quem se apaixonou.
Kavafis era - como lhe chamou depois Durrell no "Quarteto de Alexandria" - o "poeta da cidade". Isso queria dizer que era o poeta da antiguidade, 2300 anos debaixo dos pés, e através da antiguidade é que via o presente, como se os corpos quentes de agora fossem a nunca saciada possibilidade de possuir os corpos frios das estátuas.
Quanto a Mohammed El-Adl, tinha 17 anos quando conheceu Forster e morreu com tuberculose pouco depois da guerra.
Para Forster, Alexandria tornou-se uma cidade íntima, daquelas que doem como uma falta quando nos lembramos. Entre o passado que não viveu e o presente em que inventa o passado, um dos seus livros "alexandrinos" é "Pharos e Pharillon".
É difícil, improvável mesmo, encontrar a tradução portuguesa nas livrarias. Não porque esteja esgotada - tirou 1000 exemplares. Não porque seja muito antiga - saiu em 1992. Mas porque vendeu pouco e as livrarias não têm tempo nem espaço. Quem não vende, salta, é devolvido, re-armazenado, descatalogado. Na melhor das hipóteses será revendido numa feira pelo preço de um prego ao balcão. Na pior das hipóteses acaba na guilhotina, tão literalmente como Maria Antonieta. E acontece aos melhores no "mercado do livro".
No "mercado do livro", os livros rápidos ficam à vista porque são rápidos - e mais rápidos são por estarem à vista. Os livros lentos saem da vista porque são lentos - e mais lentos são por não estarem à vista. Ruído e relevo, eis tudo.
Quando a Cotovia começou a publicar, há 20 anos, tudo parecia já gritante, mas afinal não. Agora sabemos como se pode ficar cego e surdo a atravessar uma livraria.
No meio de tudo isto, ou mesmo numa estante de casa, os livros da Cotovia acham-se onde o olhar descansa, com uma pequena cotovia aos pés. São livros opacos, silenciosos, todos voltados para dentro.
Foi o que confirmei nas minhas estantes, em busca daqueles livros da Cotovia que me puseram a caminho, depois de me terem feito parar. Não vou fazer uma lista. Havia sobrecapas de papel vegetal escurecidas pelo sol e capas de duas cores clareadas pelo sol. Lá dentro, misteriosos sublinhados a lápis e, horror, pelo menos um a caneta - este "Pharos & Pharillon", que desde que foi comprado viajou duas vezes a Alexandria, uma de empréstimo, a outra comigo.
Na grande baía que já foi helénica, ptolomeica, romana, cristã, judia, grega, italiana, alemã, francesa e agora é muçulmana com subúrbios de milhões, já não encontrei fazedores de algodão, mas vi com Forster os flocos voarem sobre a cidade como uma tempestade de neve. Os livros ampliam infinitamente a realidade.
"Pharos & Pharillon" faz parte do catálogo morto da Cotovia. A falta de atenção mata, e é toda nossa. Há dias, quando fui ver o catálogo vivo, descobri tudo aquilo que não sabia sequer que saíra, dedicada e silenciosamente. Para o que mais importa, os próximos 20 anos, aproveitem.

2 comentários:

O natural de Barrô disse...

O seu post é um excelente complemento para a maravilhosa crónica de Alexandra Lucas Coelho.

Pedro Penilo disse...

Obrigado, Sara... obrigado, Alexandra.